sábado, 27 de dezembro de 2008

# 10


en regardant...

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Desconexa

Era Natal?

Sabe, Natal-Natal mesmo, de verdade? Luzes coloridas, cidade alvoroçada, clima de abraços, cheiro diferente no ar e... foi Natal?

É, acho que foi Natal...


Pena, eu nem senti.


Por quê?

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

# 09


gone.
fim.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

respiração

com o peso de um braço se parava o mundo no sussuro dos que não devem ser acordados.

e o teu cuidado vinha sempre embrulhado em algodão.




domingo, 14 de dezembro de 2008

(da linha de giz rabiscada no tablado...)

com o rosto coberto de tintas ela girava faceira o leque no ar. os dedos compridos roçando rendas, a boca entreaberta no riso bordô, do quadril escorrendo os babados dengosos da saia rodada e leve. nos pés ela bailava o nu descalço de quem sempre pisou no chão. nos olhos ela piscava o mergulho sem volta na voz suave dos meus lábios a desfiar canções.


terça-feira, 9 de dezembro de 2008

# 08


cala-se.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Marias


Na sala de espera, vozes ecoam. Maria Aparecida, Maria do Carmo, Maria das Dores. Marias de todos os cantos e por todos os santos.
Nas cabeças, tranças desmanchadas, cachos abandonados, fios perdidos, gorros, lenços. Marias enodoadas, cancerígenas. O olhar poroso, as veias secas. O passo mancado. Peles trincadas pela terapia química.
É no hospital, naquelas cadeiras, macas, nas informações complicadas em linguagem dotoral, que só uma mensagem calada se espalha: a do medo choroso dentro da morte.
Minhas Marias, tão queridas, amputadas na sua feminilidade mais doce. Seios perdidos, úteros arrancados. A esperança pendente nas pontas dos dedos ou nas agulhas nos braços. Ossos doídos, futuro manchado. Que vivam ainda minhas Marias, todas lindas: maculadas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

what if...?

(clique na figura para vê-la em tamanho maior)

sábado, 29 de novembro de 2008

pelo telefone



“Filha, tudo o que você deve fazer é correr atrás do seu sonho”.

[silêncio]

(“Mas meu sonho é mudar o mundo inteiro, mãe...”).


quinta-feira, 27 de novembro de 2008

pisar na terra


e eu, que só queria andar descalça e com chapéu de palha, que só queria água de coco e brisa na nuca, eu, que só queria um cantinho dentro no sossego..., fui ficando presa aqui.

sábado, 22 de novembro de 2008

# 07



“pourtant si sensible au charme discret
des petites choses de la vie”.

# 06


“not impossible to touch”.

# 05


“to be found”.

# 04


“dizer que não falei das flores”.

# 03


“in the sky with diamonds”.

# 02


“da palavra dita de tão longe”.

# 01



“sail me to the moon”.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sobre a autoridade

É interessante observar às vezes como se configura o nascimento e o desenvolvimento de certas coisas como, por exemplo, grupos organizados em prol de atividades e discussões que se pretendem como pontos de partida para a mudança de realidades indesejadas.
É evidente que o mundo, sendo mediado pela palavra, deve ser discutido por todos e por longo tempo, pois é apenas através da troca de idéias e da pluralidade de discursos que poderemos, cada vez mais e melhor, compreender este mundo. Além disso, ações que visem a construção de uma coletividade sem tantas desigualdades, com mais respeito, com circulação livre de cultura e de posicionamentos diversos trazem à imaginação do mais desconfiado e desesperançado (ex) utopista um vislumbre de que talvez finalmente algo aconteça.
Só que quem é (muito) desconfiado sempre se mantém na retaguarda, até que lhe dêem abertura suficiente para que ele se deixe levar e, com o tempo, adquira confiança em algo. Dessa forma, grupos organizados sob o pressuposto de que todos têm voz e participação igualitária só se tornam um conjunto passível de crença de um desconfiado / (ex) utopista quando todos os que dele fazem parte realmente tiverem voz, participação, autonomia e opiniões ouvidas e levadas em consideração de igual maneira e por todos.
Sabemos que um grupo cujo funcionamento pretenda se configurar dessa forma está fadado a correr riscos de fracasso. Atualmente, com a guerra quase sanguinária em busca de uma posição de destaque nos diversos setores da vida, com a valorização do aspecto econômico acima do pessoal (ou uso do pessoal para sucesso do econômico, prática essa já corriqueira), enfim, com toda uma estrutura social que posiciona o “eu” num nível sempre acima e acima, o que esperar de um grupo inserido numa realidade como essa e que mesmo assim posiciona o coletivo numa perspectiva prioritária? As respostas são muitas. Podemos tentar desvendar algumas delas.
Primeiramente, é óbvio que nesse coletivo vozes serão engolidas por outras vozes, e as que se fizerem ouvidas começarão a exercer a faculdade da manipulação, angariando para si a idéia de portadoras da verdade. Ao conseguir construir essa imagem, essa ou essas vozes que “falaram mais alto” tomam posse do que podemos chamar de liderança, de autoridade.
A autoridade, ao contrário do que muitos acham, não é algo ruim. Figuras que apontem um direcionamento organizacional, que representem ideais de comportamento e/ou que se coloquem como exemplos a serem seguidos, são essenciais para que haja parâmetros, caminhos, direcionamentos viáveis para onde se ir. Entretanto, essas pessoas não se auto-proclamam figuras de autoridade ou conquistam esta através de jogos de poder. Geralmente, a autoridade lhes é conferida pelos outros, devido às suas capacidades de sustentação de verdades baseadas justamente no coletivo, ou seja, aqueles que conquistam involuntariamente para si a autoridade são simplesmente aqueles que sabem ordenar toda a diversidade de vozes de um coletivo num consenso que esteja de acordo com a grande maioria.
A autoridade é, ainda, baseada primeiramente na liberdade. Aquele que recebeu a autoridade do coletivo saberá fazer uso dela a partir do momento em que souber ouvir e deixar que cada um aja de acordo consigo mesmo. A liberdade de ação e pensamento que a autoridade permite se baseia na idéia do conselho. Alguém que detenha a autoridade não pode jamais tentar, com ela, impor sua opinião ou manipular as partes do coletivo de acordo com sua causa individual, mas sim deve apenas aconselhar, deixando com que cada um escolha se deve ou não se submeter à verdade coletiva proferida por esse alguém a quem foi concedida a autoridade. As partes do coletivo exercem, assim, a sua liberdade de escolha.
Uma autoridade sensata e que respeita e considera igualitariamente todos os sujeitos de um grupo que tem objetivos comuns, ou seja, uma verdadeira autoridade, não terá dificuldades para se fazer ouvir e, por fim, receber a seu favor as livres escolhas das partes de um coletivo. Decisões impostas, pareceres interesseiros e abuso de poder nunca conseguirão esculpir uma figura de autoridade na qual confiamos, mas sim conseguirá esculpir uma na qual não depositamos o nosso respeito ou que apenas obedecemos por temê-la (a persuasão pela opressão é um dos exemplos mais requintados de violência).


[texto em construção, 21/11]



(pra não esquecer de guardar lembranças)

Medo do que acaba. Ânsia de multiplicar os segundos, distender ao máximo qualquer vivência, apertar tantos abraços, olhar mais fundo nos olhos simplesmente porque está acabando, fugindo dos dedos.


Talvez a melhor época, as mais inocentes risadas, o cansaço e a alegria mais sinceras, as lágrimas mais redondas porque geralmente compartilhadas. Talvez amizades para a vida inteira. Com certeza o baú mais leve e mais pesado que a gente vai carregar pelas ruas da velhice, aquele que trará a saudade doce e ácida do passado largado lá na juventude, lá, lá longe, perdida no meio do nosso cheiro de naftalina e poeira do tempo.


Estou com medo do fim. De ter que sair lá fora, olhar o sol e ver o que há de vir. O que há de vir, afinal? (Medo).


Estou molhando as lembranças, cultivando sua terra, acariciando seus frutos com carinho e arranjando tudo cuidadosamente. Que elas sejam o meu melhor e que eu também consiga guardar algumas pessoas amarradas aqui dentro, só pra nunca esquecer.



Que acabe.

Que este ano acabe. Que o tempo do calendário se desfaleça nos meus braços feito criança adormecida pra embalar com ternura. Que os dias de peso e tédio se desfaçam, que tudo vire cinzas, que só fique alguns amarelados cacos.
Quero que acabe. Que o vento congele e esqueça lembranças, que só reste as nuances azuis do que foi bem cultivado por ser frágil. Que os meses sejam dobrados e amarrados, que as semanas se percam. Que vá embora, seja tudo levado pelo odor circular do tempo.
Que este ano acabe. Que carregue consigo o que a maré cuspiu, devolveu, trouxe de volta. Que seja trancado, perdido, anulado. Que as páginas sejam arrancadas e reescritas, que as rachaduras se preencham com esquecimento, que durma profundamente e só acorde ao som de muitos fogos de artifício.


domingo, 9 de novembro de 2008

farewell

vento no rosto que nunca acaba. sopros, sopros, sopros. your hands used to be beside me. suspirando o vento, vento a suspirar suspirado. adeus pelo vidro. não, não feche a janela. never close the doors. há uma pomba perto do pára-brisa. brisas, asas. abertas. talvez chova. guardarei as gotas. não, não chore. i'll be back, i'll be back soon (...).



[durante a música farewell, farewell, gravenhurst]

terça-feira, 4 de novembro de 2008

idéias, pedaços

(ouesquizofrenia”)

andei querendo escrever sobre a locked-in syndrome em metáfora, dizendo sobre a imaginação e os sonhos ou sobre as prisões onde nos escondemos, lá dentro de nós. hoje de manhã cogitei o assunto das pessoas despedaçadas, estranhas, fisicamente tortas e unicamente belas. não sei, a imagem de despedidas-despedaçadas também me surgiu com freqüência dias atrás... aquela idéia de deixarmos pedaços nossos no outro toda vez que dizemos goodbye. deu vontade de inventar história a partir de um “hello, stranger” (alice, closer), e a imagem gelada e doce de olhos de abacaxi com hortelã me acompanha há longas semanas. pensei em moinhos de vento, numa saia rodada. saia floral estampada, bem brega e inocente. o rascunho de ontem se intitulava “dos sonhos que se configuram tristes e inertes” (clarisse, legião) e ia ter como corpo apenas uma imagem de um dente-de-leão. ia doer só um pouco. fico ainda horas tentando lembrar aquele trecho de “wish you were here” (pink floyd). seria “we are just two losts souls swimming in a fish bowl”? não sei, não lembro. não me encontro com essa música há tempos. talvez algum dia eu me ache nas calçadas, quem sabe. cogitei o “le petit prince”, mas depois não soube mais o que fazer com ele, nem porque cogitei, nem o porquê de nada. à tarde-quase-noite quis em desejo-impossível escrever sobre pirandello e pessoa, colocaria nietzsche, mencionaria machado, entraria no tópico da vida como um teatro e da palavra como a representação máxima do nosso silêncio. aqui eu lembro de herberto helder, do conto “duas pessoas” e do meu trabalho sobre a solidão na palavra (gostei dele). hoje foi bom porque também lembrei da minha idéia antiga sobre uma poética do silêncio em tchékhov... é/era uma boa idéia. e fico aqui nesse papo furado de pseudo-intelectual até que vem à minha mente aquele sorvete vermelho de morango que é meu cúmplice tão amigo. ele bem que poderia ser líquido. meus olhos doem. lamento esse baú de imagens soltas e minha inabilidade pra moldar o mundo em letras. eu podia ter escrito algumas coisinhas com elas, rabiscado pequenos trechos de palavras e vento. mas a mente cansada não se deixa, o corpo pesado pede descanso, meus sentimentos pedem silêncio e a mão inábil e lenta desaba. ainda bem que acho que ainda penso. ainda bem que às vezes ainda choro.


segunda-feira, 20 de outubro de 2008

(confessionário | associação livre)

às vezes eu queria sair colando minha vida em post-its. espalhar naqueles pedaços de papel amarelo todas as etapas, episódios, pessoas, tudo o que eu lembrasse. tentar organizar um painel e desfiar na observação dele os restos dos meus dias brancos, parados, em silêncio. permanecer na quietude do ficar olhando, na placidez de quem admira um grande quebra-cabeças. essa noite pretendo não dormir. meus braços e ombros estão um tanto pesados, meu coração dispara quando elenco tudo o que ainda me resta a fazer. me falaram, olho no olho, da minha ansiedade transbordante. falaram com aquela sinceridade dura de quem diz a verdade em reprimenda. era uma pessoa estranha que falava, que me olhava, que me reprimia na frente de todos os meus medos como se eu tivesse, novamente, cinco anos de idade. fugi. minúscula, torta, envergonhada. fui me encontrar com uma parede amiga (apoio), depois com uma real amiga (abraço), mas evitei me encontrar comigo mesma (descaso?). ah, como eu compraria um pouco de tempo se vendessem... sem escrúpulos, ética ou pudor, sem pensar, eu trabalharia para comprar minutos, horas. como nos tiram tanto tempo..., e com isso nos roubam a capacidade de pensar, de sentir, de absorver, de ouvir e ser ouvido, de prestar atenção, de se perder e se achar sem a preocupação dos prazos, do ser útil, do cumprimento de expectativas vazias, da relação correta de documentos em mãos e do número exato de assinaturas no pedaço de papel. mundo estúpido. mundo burocraticamente estúpido. temos sempre de provar algos a alguéns. carimbamos, postamos, rubricamos. assassinamos o tempo como se fosse um gostoso hobby. não quero saber das estruturas sociais, da legitimação das instituições, do colapso da sociedade sem seus papéis timbrados, da cartolina adornada que vai mostrar a todos quem (o que) dizem que sou. ponto. mas mesmo assim eu ainda queria tempo... agora, por exemplo, creio que compraria umas vinte horas. dormiria em dez, produziria o que tanto me pedem em dez. estaria disposta. teria alguns minutos para o café, para os olás-tudo-bem. pensando melhor, talvez eu quisesse mais outras dez horas. aí sim conseguiria fechar todos pontos em aberto. dormiria sem preocupações. escutaria um pouco de música. caminharia, quem sabe. um passeio? não, não, isso já é voar alto demais. enfim, só dez horas, seria o suficiente, o necessário. vejo que não preciso mais de post-its. não há pedaços tantos de vida pra colar. ninguém gosta de montar quebra-cabeças de poucas peças. monocromáticas. programadas. tediosas. it’s time to go.


domingo, 19 de outubro de 2008

going away


seus ouvidos suspiravam com o vento a tentar perfurar as janelas. os trilhos macios recebiam sem palavras sua fuga sem volta, e alguém tocava com dedos leves alguma música somewhere. de tempos em tempos, sua cabeça balançava devagar dentro dos acordes, seus lábios ensaiavam um cantarolar suave, e só as árvores grandes tinham tempo de fitar seus olhos e de tocar seus pés insanos a correr do mundo.
o caminho ia sendo engolido aos poucos pelos vazios que deixava pra trás. na dança macia e doce do escapar ela se sentia encontrada no longe, perdida no sempre.
colhia de leve os pensamentos que desejava guardar dentro de si, só para saborear um dia no céu da boca pinceladas de saudade, ou ao menos os restos da nostalgia azul que sua mãe lhe deixara e que carregaria pelo resto da vida. amarrou devagar todas aquelas lembranças com laço de fita, e deixou-as caídas e pálidas na memória do esquecimento.
sorriu. abriu as janelas do trem. permitiu ao vento que machucasse seu rosto e maculasse seus cabelos com cheiro de mato e mar. fixou fundo o horizonte sem forma. os olhos de propósito bem abertos arderam nas lágrimas involuntárias. fosse felicidade, fosse tristeza, realmente não importava. ela só estava indo embora.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

*

de repente algo explodia. mão espalmada na parede gritando socorro. soluços presos no mármore cinza que chorava nossa fome. o azulejo sussurando ‘calma...’, o espelho rindo do olhar morto de vontades. desespero se enroscando nas pernas, veneno sufocando veias, desamparo condensado no suspiro. de repente, (respira) o silêncio doce.

(deitamos famintos, secos, cansados e sós, e dormimos vazios sonhando no talvez).

domingo, 12 de outubro de 2008

Fragmentos # 08

Foi-se o tempo em que eu tentava mudar o mundo a partir de uma casca de noz.

Não gosto quando a gente começa a acreditar nas coisas e então vem uma tempestade de ventos e leva tudo-tudo embora... (“Faríamos floresta do deserto e diamantes de pedaços de vidro”).

Alguém acredita que, mesmo com 23 primaveras completas, eu ainda ganhei presente do Dia das Crianças? Pois é. Minha mãe é a mais incrivelmente legal de todas. Rejuvenesci uns 10 anos comendo bombons. =)
(obs.: minhas duas irmãs, de 18 e 20 anos, também ganharam caixas de bombons como presentes em comemoração ao fato de, para nossa mãe, ainda sermos eternos bebês).

Preciso começar meus estudos para me tornar tradutora-intérprete de silêncios. Ou então fazer um curso de interpretação daquelas frases que querer dizer qualquer outra coisa menos o que realmente dizem. Tudo isso porque ainda não consigo confiar em tudo o que os olhares me contam...



sexta-feira, 10 de outubro de 2008

virando lagarta

hoje acordei com o dobro do meu tamanho. minha pele acolhia pequenas escamas de tom verde. meus olhos se fechavam doloridos com o frescor da luz.
ah, mas ontem, que asas lindas..., tão negras e acetinadas, bastava um sopro para arrepiá-las de cor. afogueadas e densas, tremiam e se enroscavam faceiras no ar, piscavam sorrisos, se orvalhavam na noite. mas hoje, amanheceram vermelhas e tristes, foram ficando laranjas abandonadas, cinzentas sozinhas, brancas e tão caladas... puro pó.
começo a construir devagar meu casulo. vou arrastando meu corpo frágil e flácido pela relva, sonhando com o balanço dos cacos de vento pelo céu. à medida que me esforço para acariciar as folhas secas caídas, convencedo-as a me dar abrigo por um tempo, vou diminuindo. quando consigo entrar no meu casulo já estou tão pequena que quase de mim me perco. fico bem quieta lá no fundo me ouvindo novamente crescer, tendo certeza de alguma vida, saboreando antigos cheiros de maçã. e por uma suave fresta nas folhas vou espiando pedaços do céu, olhando desejosa os amanhãs, só pra poder de novo, quem sabe um dia, virar borboleta.



quinta-feira, 9 de outubro de 2008

morte

(para c.)

e ela carregava nos braços aquela ausência funda, de puro susto pingado nos olhos. acaso, mundo avesso-estranho. os dedos pesados desenhando curvas em vidro, o cacho calado ao lado do ouvido. fios doces de água pendendo da garganta, pequenos suspiros suspensos no teto. ausência pra sempre embalada e segura perto do peito. silêncio.



domingo, 5 de outubro de 2008

“Olhos mortos de sono”

[conto do escritor russo Antón P. Tchékhov]


É noite. A babá Varka*, de uns treze anos, embala o berço da criança e vai ronronando, quase imperceptivelmente:

Báiu-báiuchki-baiú,
Vou cantar-te uma canção...

Arde, em frente da imagem, um candeeiro verde. Estende-se, através do quarto, de um canto a outro, uma corda com cueiros e um enorme par de calças negras. O candeeiro projeta no teto uma grande mancha verde, enquanto os cueiros e as calças lançam sombras compridas sobre o fogão, sobre o berço e sobre Varka... Quando a luz começa a bruxulear, a mancha e as sombras animam-se e põem-se em movimento, como tangidas pelo vento. Falta ar. Cheira a sopra de repolho e couro de botas.
A criança chora. Seu pranto há muito já se tornou rouco e cansado, mas continua gritando e não se sabe quando vai parar. Mas Varka está com sono. Seus olhos grudam, a cabeça pende, dói-lhe o pescoço. Não consegue mover as pálpebras, nem os lábios, e tem a impressão de que seu rosto secou e lenhificou-se, que a cabeça ficou pequena como uma cabeça de alfinete.
- Báiu-báiuchki-báiu, — ronrona — vou fazer-te um mingauzinho...
Um grilo ruida no fogão. Atrás da porta, no quarto vizinho, roncam o patrão e o aprendiz Afanássi... O berço range, como se fora um lamento, Varka vai ronronando - e tudo isto funde-se num canto soturno, acalentador, que é tão doce ouvir, quando se vai para a cama. Agora, porém, esse canto apenas irrita e constrange, porque traz um entorpecimento, e dormir é impossível. Se isso, Deus não o permita, acontecer, os patrões vão moê-la de pancada.
Bruxuleia o candeeiro. A mancha verde e as sombras põem-se em movimento, entram pelos olhos entrecerrados, imóveis, de Varka, confundem-se, em seu cérebro meio adormecido, em imagens nebulosas. Ela vê nuvens escuras, que se perseguem pelo céu, gritando como aquela criança. Mas eis que soprou o vento, sumiram as nuvens, e Varka vê uma estrada larga de macadame, coberta de lama quase líquida. Sobre aquela estrada, carroças deslocam-se devagar em fila, arrastam-se homens de alforje ao ombro e perpassam sombras estranhas. De ambos o lados, vê-se uma floresta, através do nevoeiro gélido. De repente, os homens de alforje e as sombras caem por terra, na lama semilíquida. “Para que isso?”, pergunta Varka. “Dormir, dormir!”, respondem-lhe. E eles adormecem profunda e docemente. Pegas e corvos estão pousados sobre os fios telegráficos, gritam como a criança e procuram acordar os homens.
- Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção... — ronrona Varka e já se vê em certa isbá escura, abafada.
Revolve-se no chão o seu falecido pai, Iefim Stiepanov. Ela não o vê, mas ouve como rola de dor e geme. Como diz o doente, a hérnia “tomou conta dele”. A dor é tão forte que ele não pode, agora, dizer palavra e somente sorve o ar e bate os dentes como se bate num tambor.:
- Bu-bu-bu-bu...
Mãe Pielaguéia correu à casa senhorial, para avisar os patrões de que Iefim estava morrendo. Já saiu há muito e está demorando demais. Varka fica deitada sobre o fogão, sem dormir, prestando atenção àquele “bu-bu-bu”. Mas, eis que se
ouve um carro chegar à isbá. Os patrões enviaram para ver o doente um médico jovem, hóspede deles. O médico entra na isbá. Não se consegue vê-lo no escuro, mas ouve-se como tosse e faz barulho com a fechadura.
- Acendam a luz — diz ele.
- Bu-bu-bu... — responde Iefim.
Pielaguéia corre para o fogão, à procura dos fósforos. Depois de um minuto de silêncio, o médico encontra um no bolso e o acende.
- Nesse instante, paizinho, nesse mesmo instante — diz Pielaguéia e corre para fora, um pouco depois, e volta com um toco de vela.
Iefim está com as faces coradas, brilham-lhe os olhos, e o olhar parece estranhamente penetrante, como se pudesse ver através do médico e das paredes.
- E então? O que foi que você inventou? — pergunta-lhe o médico, inclinando-se sobre ele. — O quê! Faz muito tempo que tem isso?
- Como? Chegou a hora da morte, Vossa Nobreza... Vou deixar o mundo dos vivos...
- Chega de bobagem... Vamos curá-lo!
- Seja como quiser, Vossa Nobreza, agradecemos humildemente, mas a gente compreende... Se já chegou a hora da morte, que se vai fazer?
O médico passa um quarto de hora lidando com Iefim, depois se levanta e diz:
- Não posso fazer mais nada... Você deve ir para o hospital, eles vão te operar lá. Vá agora mesmo... Sem falta! Já é um pouco tarde, no hospital estão todos dormindo, mas não faz mal, vou dar a você um bilhetinho. Está ouvindo?
- Mas, como é que ele pode ir, paizinho?— diz Pielaguéia. — Não temos cavalo.
- Não faz mal, falarei com os patrões, eles vão emprestar um.
O médico sai, apaga-se a vela e escuta-se novamente: “bu-bu-bu”... Depois de meia hora, ouve-se chegar à isbá uma telega pequena, enviada pelos patrões, Iefim apronta-se e vai...
Mas, eis que chega uma clara, luminosa manhã. Pielaguéia foi ao hospital para se informar sobre Iefim. Uma criança chora e Varka ouve alguém cantar, com a sua voz:
- Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção...
Volta Pielaguéia, persigna-se e murmura:
- De noite, eles o operaram e, de manhãzinha, entregou a alma a Deus... Que esteja em paz, lá no céu... Dizem que o levamos para lá muito tarde...
Varka vai para o mato e chora lá. Mas, eis que alguém lhe bateu na nuca, com tanta força que sua testa choca-se contra uma bétula. Ergue os olhos e vê, diante de si, o patrão sapateiro.
- Que está fazendo, porca? A criança chora e você está dormindo.
Puxa-lhe a orelha com força. Ela sacode a cabeça e torna a balançar o berço e a ronronar sua canção. A mancha verde e as sombras das calças e dos cueiros balançam-se, piscam-lhe e, pouco depois, dominam-lhe novamente o cérebro. Vê mais uma vez a estrada de macadame, coberta de lama semilíquida. Os homens de alforje às costas e as sombras estão estirados e dormem profundamente. Vendo-os, Varka sente uma vontade louca de dormir, dormir com toda a alma; mãe Pielaguéia, porém, caminha a seu lado, apressando-a . Vão à cidade pedir emprego.
—Uma esmolinha, pelo amor de Deus! —implora a mãe aos transeuntes. — Por caridade, meus bons senhores!
- Me dá a criança! —responde-lhe uma voz conhecida. — Me dá a criança! — repete a mesma voz, mas agora já abruptamente, com rancor. — Está dormindo, animal?
Varka levanta-se de um salto e, olhando em redor, compreende o que sucedeu: não hás mais estrada, nem Pielaguéia, nem gente, mas, no meio do quarto, está a patroa, que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa gorda, de ombros largos, alimenta a acalma a criança, Varka olha-a de pé, esperando que acabe. Além das janelas, o ar já está se tornando azul, empalidecem as sombras e a mancha verde no reto. Não demora a manhã.
- Toma! — diz a patroa, abotoando a camisola sobre o peito. — Está chorando. Deve ser mau-olhado.
Varka apanha a criança, deita-a no berço e recomeça a embalá-la. A mancha verde e as sombras desaparecem pouco a pouco e já não há ninguém que se esgueire para dentro de sua cabeça e enevoe-lhe o cérebro. Mas não passou o sono, um sono terrível! Varka deitas a cabeça na beirada do berço e balança-se com todo o corpo, a fim de dominar este sono, mas, apesar de tudo, seus olhos estão grudados e pesa-lhe a cabeça.
- Varka, vai acender o fogão! — ressoa a voz do patrão, atrás da porta.
Quer dizer que já é tempo de se levantar e começar o trabalho. Varka deixa o berço e corre a buscar lenha no depósito. Está contente. Quando se anda ou corre, não se tem tanto sono. Traz lenha, acende o fogão e sente voltar a si o rosto lenhificado e aclararem-se as idéias.
- Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
Varka pica a lenha em gravetos, mas apenas tem tempo de acendê-los e enfiá-los no samovar, já se ouve nova ordem:
- Varka, limpa as galochas do patrão!
Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa em como seria bom enfiar a cabeça numa galocha grande e funda e cochilar um pouco... De repente, a galocha cresce, fica inchada, enche todo o quarto. Varka deixa cair a escova, mas, no mesmo instante, sacode a cabeça, arregala os olhos, procura fazer com que os objetos não cresçam e não se movam em seus olhos.
- Varka, vai lavar a escada lá fora, que até dá vergonha perante os fregueses!
Varka lava a escada, arruma os quartos, depois acende outro fogão e corre à venda. Há muito serviço, não sobra um instante de lazer.
Mas, não há nada tão difícil como ficar parada, diante da mesa da cozinha, e descascar batata. A cabeça tende a pender sobre a mesa, a batata parece saltitar-lhe nos olhos, a faca tomba-lhe da mão. Ao lado dela, vai andando de um lado para outro a patroa gorda e zangada, de mangas arregaçadas, e fala tão alto que sua voz reboa no ouvido. É outra tortura servir à mesa, um inferno lavar roupa, costurar. Há momentos em que se tem vontade de não ligar a coisa alguma, arremessar-se ao chão e dormir.
Passa o dia. Vendo a escuridão chegar às janelas, Varka aperta com as mãos as têmporas, que tendem a lenhificar-se e sorri, sem saber por quê. A treva acaricia-lhe os olhos que grudam e promete-lhe um sono forte, para daqui a pouco. De noite, chegam visitas.
- Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
O samovar é pequeno e, antes que as visitas se dêem por satisfeitas, torna-se necessário esquentá-lo umas cinco vezes. Depois do chá, Varka passa uma hora inteira, parada, olhando as visitas e esperando ordens.
- Varka, corre para comprar três garrafas de cerveja!
Levanta-se de um salto e procura correr o mais depressa possível, para enxotar o sono.
- Varka, vai buscar vodca! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka, limpa os arenques!
Mas, eis que as visitas se foram, finalmente. Apagam-se as luzes, os patrões vão dormir.
- Varka, embala a criança! — ressoa a ordem derradeira. Um grilo trila no fogão. A mancha verde no teto e as sombras das calças e dos cueiros esgueiram-se novamente para os olhos entrecerrados de Varka, bruxuleiam e enevoam-lhe a cabeça.
- Báiu-báiuchki-baiú, — ronrona — vou cantar-te uma canção...
Mas a criança grita, extenua-se de tanto berrar. Varka vê novamente o macadame lamacento, os homens de alforje às costas, Pielaguéia, pai Iefi. Compreende tudo, reconhece a todos, mas, através da modorra, somente não consegue compreender aquele força que lhe amarra pés e mãos, que a esmaga e impede-lhe a vida. Olha ao redor, procura aquela força, para se livrar dela, mas não a encontra. Por fim, extenuada, concentra todas as energias e todo o seu olhar, espia para cima, para a mancha verde que bruxuleia e, prestando atenção aos gritos, encontra o inimigo que a impede de viver.
O inimigo é a criança.
Ri. Acha estranho que, até então, não tenha compreendido uma coisa tão simples. A mancha verde, as sombras e o grilo parecem rir igualmente, surpreendidos.
A idéia absurda toma conta de Varka. Ergue-se do tamborete e passeia pelo quarto, sem piscar, um sorriso largo no rosto. Está contente e excitada com a idéia de que, dentro de um instante, vai livrar-se da criança, que a deixa amarrada de pés e mãos... Matar a criança e, depois, dormir, dormir, dormir...
Rindo, pestanejando e ameaçando a mancha verde com os dedos, Varka aproxima-se cautelosa do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de estrangulá-la, deita-se rapidamente no chão, ri de alegria porque já pode dormir e, um instante depois, dorme profundamente, como se estivesse morta...


(1888)



* diminutivo de Varvara.

domingo, 28 de setembro de 2008

| viagem pra dentro da íris |

De trás da cerca de madeira espetou o dedo no prego achando que era espinho de flor. Com a dor despertou e viu a velha cerca coberta de musgo, a madeira posta na ordem triste do que não pediu pra acontecer. Procurou a flor que jurava estar ali. Percebeu que era só devaneio e pisou com força o pé no chão. O prazer da terra molhada se espalhou pelo seu sangue, machucou com cor seus lábios pálidos, incandesceu seu rosto que se virou para o céu. Olhou e viu o sol, correu a pupila pelo algodão borrado das nuvens, apertou o dedo machucado com o coração. (“Mas o coração é só um órgão, mãe”. “É sim, meu filho, mas é o mais dolorido de todos”). Caminhou ainda três passos com a pele tatuando a terra, com os olhos perdidos no manto do céu. Dentro dos três passos ensaiou uma pequena dança por dois continentes, arrastou sua mente por dunas azuis, se levou para o longe dentro do eterno. Ficou assim parado em vôo num canto do jardim, descalço e sozinho, com sangue pelos dedos e sol a se espatifar nos olhos. Decidiu não voltar, e saiu correndo atrás de sua flor.

*

sábado, 27 de setembro de 2008

setembro, quinta

(a um anjo barroco)

eu poderia ter escalado o muro, quebrado os tijolos do nosso silêncio, afastado todo o concreto do meu orgulho e da tua resistência. eu poderia ter segurado teu olhar nos meus olhos por mais tempo, poderia ter desatado meu pescoço, te chamado com um “olá” sem jeito pra conversar de canto. eu poderia ter escalado os pilares do meu medo, esculpido algumas palavras, ensaiado suaves gestos. eu poderia ter feito muitas coisas. poderia ter mudado o curso de um rio inteiro e assim criado uma floresta densa do outro lado da margem. pena que pra mim já é o fim da primavera. pena que na noite já o fim da quinta-feira.


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“pasárgada não existe!”: diálogo

(para gabriela)



g: (chegando com ares de novidade e espanto) você não sabe... pasárgada não existe!

s: ?... ?!...?!?! [*“como é que ela me fala uma coisa dessas sem preparar meu coraçãozinho frágil?”*] como assim?

g: não, eu descobri que... me contaram que pasárgada não existe porque é o lugar onde você gostaria de estar ao invés de estar onde está.


s: [*...entendendo...*] ah, sabe o “le petit prince”? então, lembro de uma frase dele que fala sobre isso.

g: eu não lembro...

s: peraí..., eu acho que é assim: “on n’est jamais content là où on est”. só não lembro o capítulo... procuro ainda hoje e te mando.

g: é, então...

s: mas isso é verdade, a gente sempre tá querendo estar em outro lugar. é essa coisa da eterna busca humana, sabe?

g: é... mas pasárgada não existe... [*“para onde vou agora?”*]

(na porta da geladeira)

“mãe, sei que você não tá aqui. tô sentindo falta do teu beijo de manhã, do pão com queijo derretido, do teu cheiro de lavanda e leite morno. sei do seu barulho e agitação, da limpeza bagunçada da casa, dos legumes com o monte de vitamina que a gente sempre precisa comer. mas o que falta mesmo é o teu colo, tua risada que estala, tua vontade de contar história, a cama forrada com lençol limpo e com aquela dobra que você sempre deixa pra sussurrar baixinho “vem-dormir” no ouvido da gente. mãe, vê se vem logo. tô te esperando. abraço com beijo. aparece. saudade chata. a roseira floresceu de novo. tem laranja. sábado vai chover. te amo”.


terça-feira, 16 de setembro de 2008

Sentidos II


Nem sempre quando acordamos temos em nós o pleno sentido das coisas, das pessoas, do mundo, da existência ela inteira em si.
O cotidiano ligado num piloto automático, com sua mecanicidade e velocidade, com a precisão de uma máquina enferrujada e precária que insistimos ser perfeita, nos torna rígidos, insensíveis e impenetráveis como uma chapa de aço.
Concordo que isso talvez seja um sistema de defesa, para não se absorver por completo a ilogicidade da realidade, para absorvê-la somente em pequenos fragmentos. (Doses homeopáticas das coisas confusas e surreais que não temos a plena capacidade de compreender).
Pode ser por isso que refletimos tão pouco, que não nos permitimos nos distanciar e olhar com estranhamento para o mundo. Se pensássemos na imperfeição da realidade com mais freqüência, se nos deslocássemos mentalmente da banalidade da nossa rotina,
teríamos problemas em encontrar certos sentidos, certas significações para coisas e eventos que, antes, nos pareceriam normais.
A normalidade é facilmente destruída se observada por um olhar mais torto, um olhar mais aguçado e sem receios. O interessante é que, quando perdemos nossas referências do que é normal, os alicerces que moldavam o chão onde costumávamos pisar toma um ar amorfo, se torna nebuloso e desfigurado. É como se a engrenagem da máquina que nos move emperrasse. Você fica lá, eterno, esperando o conserto que trará de volta seus sentidos perdidos.


Assim, dica: não absorva o mundo sinestesicamente, faz mal.


[post confuso e sem sentido (não foi de prepósito)]

Sentidos I


Não é bom ficar guardando o sentido. Os tantos sentidos com as marcas alaranjadas do passado, com sua poeira colecionada cuidadosamente grão a grão. Os sentimentos que não existem mais catalogados todos em prateleiras, numerados, classificados de acordo com sua intensidade e relevância. Sentidos perdidos lá dentro, como uma biblioteca labiríntica que visitamos quando bate a saudade triste de repente.
Esses sentidos, em sua maioria, surgiram porque algum dos cinco sentidos foram despertados bruscamente. Foi um cheiro que passou correndo e você agarrou sem saber, foi o esbarrão que na hora doeu mas que depois não doeu mais a não ser na lembrança, o gosto diferente daquele chocolate que te deram sem você querer, a palavra que só você ouviu ao acaso, aquilo que só você fez questão de olhar.
É a vida latente dos primeiros sentidos, provocados pelos segundos sentidos, que faz com que você perca o sentido para onde estava indo,
ignore os sentidos para onde irá e dê sentido para cada dia que você acorda não vendo sentido algum.

domingo, 14 de setembro de 2008

Let’s talk about hate and pity

Um pouco de cotidiano, vamos lá. Domingo frio em SP, semana cheia e complicada pra começar amanhã e eu que deveria estar terminando de ler “La dame aux camelias” (Alexandre Dumas) no meu francês très bien e fazendo uma resenha sobre algum dos muitos textos na minha pasta que discorrem sobre leis e direitos da educação no Brasil. Just one more glorious sunday, I’d say.
Mas, ao invés de estar mergulhando meus grandes olhos num pouco de cultura, cá estou eu pelas janelas pululantes da Microsoft, lendo pela Internet textos que as pessoas escrevem e doam ao poderoso tio Google.
O interessante é que a gente sempre acaba encontrando algumas surpresas nesses passeios pela web. Hoje até plágio eu achei, olha que legal. O engraçado é que eu realmente não ligo para direitos autorais. Como já dizia Gabriel García Márquez, as frases estão sempre navegando sem dono pelos ares, é só levantar os dedos e agarrá-las. A questão é que depende muito de quem faz a cópia e, no caso em questão, a minha surpresa não foi nada agradável.
Enfim, mas nada disso vale meu domingo, meu ódio (que é sempre) momentâneo, minha piedade sem graça ou este post.

Acho que foi só pura vontade de gastar caracteres mesmo.
=)



[roxo e verde pra compensar o post cinza]

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Centopéia

Mamãe sempre me mandava muito cedo pra escola. Ia eu com aquele monte de caderno e sono tropeçando pela grama. Eu só gostava mesmo do cheiro dos lápis de cor que ficava na folha branca que a tia dava no final da aula pra gente desenhar. Aliás, gostava mais era de ficar guardando papel de bala e chiclete no estojo só pra chegar em casa e mostrar pra Leléia (minha tartaruga) o quanto eu tinha comido de doce.
Mas teve um dia que tudo ficou estranho. Eu ainda lembro da manhã de garoa fria, dos gorros pelas cabeças de todo mundo. Cheguei na escola bravo por ter saído da minha cama quentinha só pra ficar repetindo umas coisas que chamavam de vogais, tudo letra boba que sempre me deixava com mais sono. E ainda por cima era dia de recorte, o que dava a maior briga na sala pela tesoura e pela cola.
Peguei uma revista, fui procurando as letras, olhando o desenho delas e vendo se achava umas tais de palavras que diziam estarem lá. A tia passou distribuindo as tesouras nas mesas da frente e começou o alvoroço. Alvoroço barulhento que de repente perdeu voz. Tudo ficou quieto. Alguma coisa explodiu e desamarrou de mim. Uma dança louca acontecia na minha cabeça enquanto eu olhava a página da revista, atônito. Palavras... Eu tinha encontrado as palavras! Vi as letras todas espertas se grudando, me agarrei nas sílabas, respirei. Assustado, percebi que estava entendendo: “pre-ço dos le... gu-mes”.
Foi horrível. Contei pra professora, desesperado. Ela me deu um abraço apertado, falou de mim-todo-vermelho pra classe, escreveu bilhete no meu caderno. Na volta pra casa, fiquei sem ação na frente de toda letra que eu via até ela puxar as outras e eu ver uma palavra. Eu não conseguia mais parar de procurar palavra por tudo quanto era canto do caminho.
Chegando em casa, minha mãe leu o bilhete e começou a rir e a chorar. Pegou um papel e ficou escrevendo bem grande um monte de palavras que eu lia pra ela em voz alta. Só que de repente, na mesa, bem do lado da mão dela, um bicho gigante-feio-nojento e com muitas mil patas vinha se aproximando. Eu dei um grito e um salto pro lado. Grudei na parede.
Minha mãe, com aquela calma doce dela, disse que não era pra eu ter medo, pois era só uma centopéia que devia ter vindo do jardim. “Uma o quê, mãe?”. Ela pegou o lápis e escreveu no papel. Eu li: “cen-to... pé-i-a”. Olhei o bicho deslizante. Meu medo se misturou com simpatia. Na minha simpatia juntou tristeza. Descobri que o bicho era aquela palavra cheia de letras. Era só aquilo.
Perdi o medo.
Perdi a simpatia.
Ficou só a tristeza. Tristeza de descobrir que a imensidão de todo o desconhecido que me amedrontava e me fascinava ia pra sempre caber dentro da simplicidade definitiva das palavras.
Saí correndo e fui contar tudo pra Leléia.


sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Fragmentos # 07

[pela minha impossibilidade momentânea de escrever textos inteiros,
seguem os pedaços de inspiração que ficaram no inacabado]

*

.aurora borealis.

Ontem tuas digitais encontraram meus poros.

*

La coccinelle dans tes cheveux
(A joaninha nos teus cabelos)

Sonhei com você e eu. Você de preto me abraçando apertado. Eu olhando tua sapatilha vermelha querendo fugir da grama pra me alcançar. Você cheirando a dezembro e infância, e eu chorando as lágrimas redondas da nossa saudade.

*


quarta-feira, 3 de setembro de 2008

.minha coleção de palavras.

[em permanente atualização]

#

“nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. o que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos (...)”.
(nas águas do tempo, mia couto)

“em qualquer lugar que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera”.
(cem anos de solidão, gabriel garcía márquez)

“– as idéias não são de ninguém – disse. com o indicador, desenhou no ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: - andam voando por aí, como os anjos”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“esperas uma carta de fogo
que te restitua o amor
e te remova do caos”.
(manhã metafísica, murilo mendes)

“o corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“a paixão é o mundo a dividir por zero”.
(os infelizes cálculos da felicidade, mia couto)

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa”
([sem título], paulo leminski)

“há sempre um amor procurando seu nome
na solidão do livro dos tempos”.
(temas eternos, murilo mendes)

“(...) o amor era um sentimento contra a natureza, que condenava dois desconhecidos a uma dependência mesquinha e malsã, tanto mais efêmera quanto mais intensa”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“amar o perdido
deixa confundido
este coração”.
(memória, carlos drummond de andrade)

“seu corpo falava pelos olhos. e que olhos cristalindos!”
(joãotónio, no enquanto, mia couto)

“tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha”.
(o homem público nº 1, ana cristina césar)

“tua cabeça é uma dália gigante que se desfolha nos meus braços”.
(estudo nº 6, murilo mendes)

“sempre no meu amor a noite rompe.
sempre dentro de mim meu inimigo.
e sempre no meu sempre a mesma ausência”.
(o enterrado vivo, carlos drummond de andrade)

“aposto que o senhor não sabe chorar direito. chorar tem as suas técnicas, doutor. eu tenho muita certeza neste assunto. me formei em tristezas, sou cursada. a dor o que é? a dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura, para chegar a um outro lado. e esse lado é uma parte de nós que não conhecemos. eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...”.
(os olhos fechados do diabo do advogado, mia couto)

o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva”.
(a condição humana, hannah arendt)

“olhou os estrelejos no céu. as estrelas são os olhos de quem morreu de amor. ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades”.
(o perfume, mia couto)

“mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado”.
(o amor nos tempos do cólera, gabriel garcía márquez)

“ainda o que nos vale é sermos capazes de chorar, o choro muitas vezes é uma salvação, há ocasiões em que morreríamos se não chorássemos”.
(ensaio sobre a cegueira, josé saramago)

“– adieu, dit le renard. voici mon secret. il est très simple: on ne voit bien qu’avec le cœur. l’essentiel est invisible pour les yeux.
– l’essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince, afin de se souvenir.
– c’est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.
– c’est le temps que j’ai perdu pour ma rose... fit le petit prince, afin de se souvenir.
– les hommes ont oublié cette vérité, dit le renard. mais tu ne dois pas l’oublier. tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. tu es responsable de ta rose...
– je suis responsable de ma rose... répéta le petit prince, afin de se souvenir”.
(le petit prince, antoine de saint-exupéry)

“estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. a terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. há quantos anos não chovia assim? de tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. o céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. a gente indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?”
(chuva: a abensonhada, mia couto)

“descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco”.
(memória de minhas putas tristes, gabriel garcía márquez)

“às vezes numa pequena coisa pode-se encontrar todas as coisas grandes da vida, não é preciso explicar muito, basta olhar”.
(bom dia camaradas, ondjaki)

“não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas”.
(o fim das coisas, carlos drummond de andrade)

“sempre vivi carente de alguma coisa. desassossegado, querendo tudo de uma vez, lutando rigorosamente por algo mais. estava aprendendo a não ter tudo de uma vez. a viver quase sem nada. do contrário continuaria com minha visão trágica da vida. por isso agora a miséria não me fazia muito mal”.
(trilogia suja de havana, pedro juan gutierrez)


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