sábado, 30 de agosto de 2008

Silêncio

– Eu gostava do teu cabelo.
– Esse que ainda tá na minha cabeça?
– Não... você não entendeu. Eu gostava dele comprido, todo desfalecido sobre você, naquele desamparo todo cacheado, sabe?
– Sei. Lembro que de madrugada você ficava enrolando os dedos nele até prender algum e ficar se torcendo pra tirar de lá sem me acordar. Era engraçado.
– Por que você nunca me disse que eu te acordava?
– Você não me acordava. Eu nunca dormia, só isso.
– Nunca dormia?
– Eu nunca consegui dormir com medo que você escapasse, deixasse um ‘tchau’ rabiscado no espelho, feito fazem nos filmes. Não queria que você simplesmente saísse e levasse nossa história no bolso sem dizer nada. Sei lá.
– E o que você acha que deve ser dito?
– A gente não ia sair?
– Odeio quando você muda de assunto e nem disfarça.
– E eu odeio quando você quer dizer alguma coisa e sempre começa com essa dialética barata.
– ...
– O filme novo daquele cineasta japonês que eu comentei com você na terça já tá passando no cinema.
– Na terça eu te vi almoçando...
– Eu almoço todos os dias da semana.
– Por que você sempre corta quando eu tô falando?
– Talvez porque você simplesmente... demora pra falar?
– A verdade é que não faz diferença.
– Claro que faz. O filme japonês é bem melhor do que aquela comédia idiota que você quer ver.
– Você nunca passou de uma menininha assustada.
– ...
– Filme japonês tá ok pra mim.
– Sempre fez diferença. Cada palavra sua faz toda a diferença.
– Na terça eu te vi almoçando sozinha, com um jeito meio triste, não sei. Por que quando eu te chamei pra almoçar comigo você disse que não dava?
– Eu só queria almoçar sozinha naquele dia. Qual o problema nisso?
– O problema é que você anda preferindo fazer muitas coisas sozinha ao invés de comigo. Esse é o problema.
– As pessoas às vezes precisam ficar sozinhas.
– As pessoas às vezes precisam de companhia. Ou só estamos juntos pra deixar essa sua solidão mais suave?
– Que solidão? Do que você tá falando?
– Dessa solidão aí presa nos teus ossos. Desde que te vi pela primeira vez sabia dessa sua natureza só. Eu sempre soube que eu seria um acessório, uma escapatória pra quando você cansasse de ficar perdida dentro do teu silêncio.
– ...
– Diz alguma coisa.
– A sessão vai começar às nove e a gente vai se atrasar.
– Só queria que você continuasse a disfarçar que eu sou importante pra você, como antes.
– Céus! Ok, você é importante, essencial, tudo pra mim. Não vivo sem você. Agora vamos ver o filme? Pode ser aquela comédia lá, tanto faz.
– Minha menininha assustada do cabelo cacheado...
– ...
– Tá, vou pegar um casaco. Já volto. Dois minutos e a gente sai.

Ele atravessa o corredor, pára, se apóia na parede, coloca as mãos na nuca, olha o teto. Nenhum casaco.

Ela rabisca um ‘tchau.’ de batom no travesseiro e com quatro lágrimas feito pêndulo nos cílios abre a porta sem fazer barulho. Sai quieta com as mãos no bolso, amassando com a ponta dos dedos um punhado de palavras nunca ditas.



quarta-feira, 27 de agosto de 2008

[sem título]

Uma boca desenhada que chama a um ardor despudorado, porém morno de tão cálido. Uma mão que queria sair pisando poros, escavando cheiros na procura incessante que envolve sua eterna curiosidade. Um olhar que fica gritando no silêncio de cílios negros e densos. Olhar que abraça sem nunca ser tocado, que se esconde e se mostra feito mariposa bailando tonta. Os dedos que se inquietam na impaciência, e assim são mordidos pelos dentes, tocados pelos lábios, umedecidos com saliva. E a sede que extrapola veias e vai penetrando ossos. O bater de pálpebras lento. A garganta atulhada com gavetas de palavras amassadas. O tórax e as pernas que se denunciam na linguagem da aproximação mansa e implacável. O roçar de epidermes ao acaso. O arrepio que dilata e afugenta o espaço em momento. O desajeito triste da timidez, do jeito gauche de viver a vida, da insegurança de ser no mundo. Ao mesmo tempo o peito feito deserto, aberto e quente, pronto pra receber chuva. E os braços feito colcha macia e doce, esperando pra receber um corpo.





[texto escrito em 08 de Julho de 2008]

domingo, 24 de agosto de 2008

Re-parto

Na madeira da mesa pousava o sadismo do estilete*. Filetes gordos e salmorentos mapeavam nela a mesma densidade das mechas do teu cabelo todo pesado e líquido.
Do meu riso torto aproveitei para observar os sulcos dos meus dedos: veias, pontes, rugas, vales e, na ponta de todos eles, essas marcas estranhas, impressões da minha unicidade bêbada (exclusividade de existência, diz-se de identidade).
Vou cavando retas esquivas na madeira, assistindo meus dedos suaves dançarem com o estilete dentro da tarde que cai. A lâmina laranja me seduzindo sem cuidado, abrindo seus dentes sem pudor, nossa dança carnal, vales se enchendo e rios viscosos encobrindo pontes. Enquadro meu riso, e sinto teus cabelos descerem vermelhos pela minha garganta, escoarem doces do limite da madeira ao tapete.
O ranço do vinho vital me embriaga, me redesenho. Desmembro imperioso o meu universo, vou esmigalhando cada traço meu. Esculpo pra mim novas identidades. Em tua homenagem, me re-parto.




* a A. C. C. / inspired by “Ulysses”.

[texto de 24 de Agosto de 2008, 0h30]

sábado, 23 de agosto de 2008

sint(om)agmas

um rio de saliva se soltava da alma quando as amoras azedas tocavam a língua e saltavam nos dentes. / lábio pintado de sumo bordô. / vinho e passado escorrendo entre os dedos. / mel que cai da mesa, acaricia a fronte, se perde no tapete. / (com chá reguei devagar as tulipas na manhã de novembro). / pare de gritar dentro do abismo do seu travesseiro, espumas, plumas e penas ainda não têm ouvidos. / tarde tépida, criança perolada, a mão da mãe a molhar o teto de torpor. / toque piano quando a noite borrar a lua com a estupidez das nuvens. / silêncio nos postes. / vende meus olhos, derrame soluços ocos pelas pedras do meu jardim, não se esqueça de amanhecer os ventos. / contagem regressiva de vértebras pra te alcançar. / na cama, antes de dormir, cozinhe pontas de estrelas com fiapos de algodão. / enquanto o pescoço se deslocar nos teus braços, júpiter fará eternamente as pazes com saturno. / um ninho pousa dentro do vôo do pássaro. / e pena que a ternura que passei em você não uniu seus pedaços, mas ainda vou te costurar com lápis, borracha e tristeza.



[sob as notas suaves de radiohead e chopin]

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Fragmentos # 06


Tarde I

Cruzei a praça do tempo vendo como o branco do céu caía em gotas sobre a água quase estática, existente só em breves tremores, ondas; vendo como o vento dissolvia em seus braços uma voz que dedilhava acordes.
Lembro de sentir todos os músculos do corpo toda vez que o chão batia no passo.
Lembro de pensar nas cordas dançantes dentro da música.
Lembro de subir degraus, comprar livros, escrever em movimento, apertar minha cota diária de botões, expressar o número exato de sorrisos, respirar na cadência de equações químicas. E me recordo ainda que, após aceitar com resignação a dor na têmpora direita, fui pelo caminho saboreando na saliva o desejo de chocolate com cereja. Mas não havia tempo. Nunca há tempo. O grande relógio sobre a minha cabeça estalava. 13h30. Só era preciso correr.


***


Requiem for a window

Lembro de ter uma janela. No vão da porta ela colocava as orquídeas brancas. De manhã eu sabia que ela queimaria o pão, que o café estaria amargo, que o perfume dela incendiaria o banheiro.
Lembro bem daquela janela, com a cortina verde fosco que denunciava talvez seu desejo por árvores de todos os tamanhos e texturas. Uma cortina que ali estava para escondê-la, para separá-la do sol que a irritava tanto com sua ousadia de acordar cedo, todos os dias, iluminado, sempre.
(Eu gostava do barulho do salto dela logo antes da porta bater e da chave ficar a resmungar).
Antes de dormir ela costumava dar nós na ponta do lençol, como se contasse os prenúncios dos sonhos e pesadelos que a fariam acordar sonolenta às quatro da manhã, lavar o rosto, a nuca, os pulsos, beber suco, me fazer carinho no cabelo e se enrolar nos travesseiros feito pássaro.
Uma vez ela resolveu rabiscar as paredes. No nosso quarto eu podia ler trechos de pensamentos sem nexo, pedaços de cartas anônimas, anúncios esdrúxulos e inúteis. Ela não me falava nada. Empurrava seus desejos pra dentro da bolsa e saía pra passear dentro do vazio noturno dos domingos, dentro da melancolia da cidade encolhida pela ameaça do próximo dia. Na insinuação de que eu precisava de espaço, me largava no sofá, exasperado, só, eu e suas palavras.
No nosso último encontro com amigos ela me contou baixinho no ouvido que comia cerejas geladas quando criança. Aquilo deixara nela o cheiro amassado, de menina sufocada, sempre perdida no meio de um vermelho imperioso. “Cerejas tiram o meu medo de trovão”, ela ainda sussurrou rindo enquanto terminava o resto de gim. Nunca me esquecerei daquele olhar alcoólico e doce, de como vi as gotas de cereja pingarem de sua boca em mim, de como pela última vez consegui abrandar seu medo de trovão ao mergulhá-la na chuva.
Foram nossos últimos abraços no calor do terraço.
Ficaram minhas poucas lembranças penduradas na janela.

***