terça-feira, 27 de maio de 2008

Fios

Libertava sua trança sempre calada no suor noturno da varanda. Começava por entrelaçar os dedos nos cachos avulsos e desobedientes, e depois vasculhava a nuca à procura dos cheiros perdidos do dia, dos tantos desejos esfacelados pelo sol e pelos nãos, à procura do pouco de si mesma que sempre largava de propósito nas calçadas. Em seguida ia desmantelando sem pressa os nós suaves dos fios amargos de tão castanhos, preguiçosos de tão moles. Num instante uma cabeleira dançante molhava seus ombros e suas costas, beliscava sua cintura e lhe dava os ares tão sufocados de mulher madura, insinuante e sinuosa, permanente e penetrante. Já angustiada, estampava-se no espelho para olhar a certeza de ser ela mesma, deglutida e revelada pelo poder feroz de suas mechas, pelo sabor dos jasmins que se desatava do emaranhado espesso que a envolvia. Com a palma das mãos ia desmembrando os ninhos fechados, desnudando ainda mais a si nos milhares de fios abertos aos pedaços, se perguntando arisca quando seus cabelos desbravariam o mundo sem o pavor do dia, sem o desamparo das tardes, o silêncio da noite. Por fim o sono a pescava dos devaneios e a atraía para a cama. Com os braços e os dedos mais uma vez acariciava sua rede castanha e deitava a cabeça no travesseiro com toda ela espalhada, feito armadilha para a liberdade.
Dormia serenamente até a manhã seguinte, com a alma solta.


quarta-feira, 14 de maio de 2008

todos os momentos em que ela precisava descansar.

todos os momentos em que ela precisava descansar. recostar os ombros nas profundezas de pensamentos inconscientes. derreter seus olhos doídos de tanto mundo dentro de um copo morno, talvez com um pouco da maré e de seu sussurro sonolento. todos os minutos preciosos em que se via só, protegida e isolada, com o tempo e a disposição para refazer-se, encontrar-se, limpar e reaver sua alma sempre resguardada no bolso qualquer. todas as vezes que desgastava-se um pouco mais em nome de algumas notas tocadas baixinho no ouvido, só para que assim um outro plano se abrisse e, tranqüila, ela cedesse ao aconchego gigante de sua cama fria que sempre a acolhia como se ela fosse a última das crianças. as pálpebras clementes buscando o breve adeus da luz, os rumores do silêncio pedindo um pouco mais de calma, um pouco menos de dor. sua medula chorosa que contava aos ombros lânguidos os segredos da quietude doce que o corpo se permite quando descansa. a fuga lenta da realidade. a chegada vitoriosa do sono, dos sonhos, da paz. os sorrisos luminosos debaixo dos panos fofos e dos pedaços de espuma. durmamos, enfim. ao som de violinos.



terça-feira, 6 de maio de 2008

[qui suis-je?]

(Série de posts inspirada pela perguntinha capciosa do Orkut.
A pergunta que dá título a esta série está em francês não apenas porque a pergunta que aparece na minha página do Orkut está em francês, mas sim porque na verdade é tudo uma homenagem ao Sartre. Sabe, o Jean-Paul? Pois é, ele mesmo).

(Perdeu alguma coisa pelo caminho?)



Donc, qui suis-je? C’est une bonne question ça...

Talvez eu seja alguém que acabou de jantar Doritos, Coca-cola e algumas parcas bolachas recheadas, tudo em prol, claro, da manutenção de uma saúde extremamente saudável, afinal, é a lei.

Alguém que se vicia nas coisas. Em músicas, autores, assuntos... Respectivamente “City girl” (Kevin Shields), Mia Couto e filosofia. E juro que nem é doença.


Horripilantemente descabelada, um ser que ainda (oh, céus!, ainda, ainda) se desmonta nas situações menos cabíveis. Ai, ai, meu pequeno elefante drummondiano... (Não tente entender a referência capilar).

Como não amar “Phone call” (Jon Brion)? Minuto mais lindo. (Dias de viciada em trilhas sonoras dos meus melhores filmes).

Estou achando tudo isso muito “Fragmentos”...


Eu sou alguém que neste exato momento (01 am) deveria estar dormindo, lendo ou estudando, e não escrevendo textos inúteis que ninguém lê. Ainda mais agora, que só eu tenho acesso a isto aqui. Sim, pura maldade. Aliás, pura bondade. Poupando mentes humanas, sempre.
(editando alguns muitos dias depois: blog novamente aberto à visitação pública).

Queria tanto aprender a tocar harpa... Violino...

Mais uma decepção hoje... Faço coleção. Coleciono horas em que me perco do mundo e não sei onde estou. Coleciono cansaço. Coleciono cheiros de etapas da vida. Coleciono alguns arrependimentos. Coleciono profundos silêncios, tentativas frustradas, ferozes discussões imaginárias. Coleciono afeto também, coleção quase completa essa. (À busca de seres para distribuição). Ah, claro! Coleciono concretamente marca-páginas. (Aceito doações).

Alguém que conheceu alguma música de um cara chamado Zeca. Zeca Baleiro. E um viva à pipoca doce, faz-favor.

Alguém que precisa dormir. E que vai, ao som de The Smiths (“Please, please, please, let me get what I want”).

Au revoir (Simone). Capicce*?


* je ne parle pas l’italien, mais la référence n’est pas gratuite, vous savez, nada é gratuito em nada, muito menos em mim.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Un petit mélange...

Sobre “Abre los ojos” (1997), “Vanilla Sky” (2001), trilogia “Matrix” (1999-2003), “Ensaio sobre a Cegueira” (José Saramago), “Blindness” (2008), Noémia de Sousa, Mia Couto, Hannah Arendt e déjà vus (não necessariamente nessa ordem).


Acredito que as referências acima deixam transparecer inicialmente pelo menos dois grandes eixos temáticos que, a meu ver, são congruentes: percepção da realidade e visão. Porém, é possível notar também que esse texto provavelmente seguirá pelos mais diferentes caminhos, tocando em assuntos que à primeira vista não se encaixariam entre si.
Dessa forma, acho necessário deixar claro que o fato de assuntos tão díspares aparecem encadeados num mesmo espaço é fruto de uma relação incessante entre pensamentos que não
consigo evitar, mesmo estando sob a proposta de escrever única e exclusivamente sobre a e b. As reflexões surgem interligadas umas às outras e meus dedos seguem esse fluxo que, no final, consegue amarrar num mesmo texto, por exemplo, idéias discutidas num filme como “Matrix” ou “Abre los ojos”, nuances da poética de Mia Couto e pontos da teoria filosófica de Hannah Arendt. Vai entender...



Assisti ao filme “Vanilla Sky” (2001), de Cameron Crowe, já há alguns anos. Até então eu não sabia que ele era uma refilmagem de um filme chamado “Abre los ojos” (1997), do diretor Alejandro Amenábar (mesmo diretor de “Mar Adentro” (2004), que assistirei em breve). Assim, sabendo desse fato recentemente, consegui assistir a “Abre los ojos”.
A minha intenção não é comparar o original com o
remake, mas sim discutir a questão da percepção da realidade e de como podemos, com ou sem máquinas para congelar nossos corpos e criar para nós realidades virtuais, viver num mundo à parte daquele considerado “real”.
Os sonhos são um bom exemplo de vivência numa realidade criada na maioria das vezes inconscientemente por nós mesmos. O sonhar é a experiência mais clara e simples de criação de uma realidade paralela onde tomamos as decisões e interagimos num plano diferente, desenhado, modificado e comandado por nós mesmos muitas vezes sem que sequer saibamos. É uma realidade sem as interferências do acaso, sem as coincidências inexplicáveis ou os problemas insolúveis da vida real. E como essa realidade criada só existe enquanto dormimos, muitas vezes ela surge apenas como uma extensão distorcida do que vivemos no cotidiano.
Uma realidade distorcida pelo cérebro às vezes é de tal modo apresentada a nós que não é raro sentirmos dificuldade em separar o que aconteceu no mundo empírico do que foi apenas sonho. Essa dificuldade gera lembranças falsas na nossa memória, chegando ao ponto de cultivarmos certas imagens que nunca aconteceram na realidade, sendo elas apenas frutos de sonhos marcantes.

A trilogia Matrix (1999-2003) trouxe um bom exemplo de realidade virtualmente criada. Porém, paradoxalmente, ela seria justamente a nossa realidade palpável, criada com nuances perfeitas por programas computacionais. A nossa realidade seria uma ilusão criada pela tecnologia para que a realidade verdadeira permanecesse conhecida somente pelos escolhidos, pelos Neos, Trinities, Morpheus e seus
plugs na nuca. (Se surgir a oportunidade, que sigamos os coelhos brancos sem hesitar).
A ciência é um ponto importante no desenvolvimento de outras percepções de realidade. Em “Abre los ojos” e “Vanilla Sky”, ela é essencial para o congelamento corpóreo e também para a possibilidade de criação de uma seqüência da vida no plano das idéias. E, além disso, é evidente que por trás do congelamento / interrompimento da vida para a vivência de uma outra, fantasiosa, há um desejo de imortalidade e de retardamento da velhice ou, pelo menos, um anseio de viver numa época futura, na esperança de que no futuro haja uma existência melhor.
Eu acredito que esse vislumbre de que o futuro será sempre melhor, numa idéia de progresso e de evolução constantes com o passar do tempo, revela uma certa ingenuidade desesperada. Por isso eu gosto tanto da concepção cíclica de História quanto da idéia de que a História não se repete nunca, sendo passível de eventos extraordinários e inesperados pela razão do mundo estar sempre em constante renovação com a chegada de seres novos e únicos, ou seja, as crianças e os jovens. Esta última concepção está presente, por exemplo, nas reflexões de Hannah Arendt.
Ainda em relação ao futuro, preciso entrar novamente no mundo de Matrix e assim chegar aos
déjà vus. Acho impossível não lembrar da famosa cena em que a personagem de Keanu Reeves diz, ao ver o mesmo gato duas vezes, ter tido uma espécie de déjà vu, tomando ele aqui conhecimento de que está diante de uma falha na Matrix. Assim, o que realmente seriam os déjà vus? (Uma falha na Matrix?)
Tenho certeza de que a Wikipedia deve trazer explicações plausíveis para esse fenômeno, porém, nenhuma delas deve chegar a explicar convincentemente de modo que saibamos não estar diante de algo no mínimo estranho. Não sei se todas as pessoas têm ou já tiveram déjà vus, o que posso dizer é que a sensação é a de uma espécie de perda, uma queda num momentâneo precipício onde espaço e tempo perdem suas referências de aqui e agora. Você, por um ou poucos segundos, pára no tempo e se questiona silenciosamente sobre o que é passado, presente e futuro. É uma experiência extremamente curiosa para os não muito fracos de coração, afinal, é uma falha na nossa realidade ou, como dizem, na Matrix.
Os
déjà vus obviamente estão relacionados ao já vivido, porém, vejo-os na verdade sempre como uma união momentânea entre presente, passado e futuro. E como eles se apresentam como uma queda num precipício, acho que o que há de mais amedrontador é o não vislumbre de um futuro, já que nos sentimos presos entre o presente e o passado, sem ter uma idéia exata de onde estamos ou, melhor, sabendo que estamos num vão do tempo, numa realidade atemporal. No filme “Abra los ojos” há uma personagem que diz que os déjà vus são apenas um lapso do cérebro relacionado à percepção. Talvez seja só isso.
Falando em percepção, temos que, para sabermos o que é verdadeiramente real, é inevitável que usemos os nossos cinco sentidos. Entretanto, creio que o sentido mais ligado à percepção seja a visão. Assim, chegamos a um assunto muito interessante: qual é a nossa real capacidade de enxergar?
Não há como falar de visão sem mencionar o maravilhoso livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, que foi recentemente adaptado para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles. [...]


[post em desenvolvimento / 28 de julho de 2008, 01h]