quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Fragmentos # 01

São exatamente 0h07 e meu pai está pululante porque, segundo ele, o Corinthians caiu para a segunda divisão. Fato extremamente significativo para a história da humanidade, claro.


Amigos musicais são muito interessantes. Gosto muito deles. Agora, por exemplo, estou ouvindo uma música chamada “Lover, you should've have come over”, do Jeff Buckley, que foi indicação de um grande amigo. Aliás, amigo esse que já me apresentou e indicou tanta coisa... Acho que devo mais uns doces pra ele.


Juro que há momentos em que eu não gosto desse lugar... Por exemplo, leitor-gasparzinho, verifique o último post. O que é aquilo? Epifania surrealista? Completa falta de lucidez? Insônia tediosa misturada com um pouco de viagem sem volta na Hellmann's? Dúvidas, dúvidas...


[cantarolando] “... et il fait encore noir, elle descend le boulevard, elle s'en va...”.


Por que morango só existe no inverno?


Os seres humanos são incomunicáveis.


Em muitas ocasiões, timidez é uma desgraça.


Trident e Halls de melancia: as mais novas invenções revolucionárias para paladares de pessoas-formigas que não vivem sem açúcar.


Compra-se cabana no fim do mundo. Vendedores?


Arte deveria ser distribuída gratuitamente em saquinhos pelas esquinas mais movimentadas.


Um brinde às vozes roucas e aos olás calados.


Sempre pagamos um alto preço sendo o que somos ou sendo o que queremos ser.



Eu acreditei no Papai Noel, assisti X-Tudo e Glub Glub, sempre tive esperanças de que o pessoal da Caverna do Dragão encontrasse o caminho de volta pra casa, me sujei na terra, adorava o jeito que o Snarf chamava o Lion em Thunder Cats, já inventei mil histórias de bruxas e fadas pra poder brincar, nunca quebrei nenhuma parte do corpo e há dias em que a minha única filosofia é à la Garfield e o meu ânimo segue o do Charlie Brown. Será que ainda vendem pirocópteros?


Van Gogh, Nietzsche e Einstein eram caras legais.


Omar é o mar e o mar é um ar. Amar Omar é amar o mar ou um ar?


As madrugadas deviam ser eternas.


Às vezes acho que minha mente bem que podia ter vindo com um botão de desligar. Que falha grave de fabricação!


Lâmpadas, travesseiros e post-its são tão poéticos...


Falar é uma das tarefas mais complexas do ser humano. Tão complexa que há tanto gente que tem tanto medo de ensaiar que se perde no silêncio, quanto há pessoas que de tanto ensaiar se jogam na imensidão da prolixidade. Mas, enfim, tanto faz, continuamos incomunicáveis. (E cheios de vírgulas e de tantos).


Arroz sobre feijão ou feijão sobre arroz? O vício da virtude ou a virtude do vício? Catchup ou mostarda? It's better to be a living dog or a dead lion*? Rio ou São Paulo? Nescau ou Toddy? Reticências ou ponto de interrogação? Perguntas idiotas ou respostas cretinas?
Esquece...
.
.
.

Café com leite?


Como já dizia Drummond: “Eta vida besta, meu Deus” (verso do poema “Cidadezinha qualquer”).




* citação parafraseada do filme “Something Wild” (1986).

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Manhã, coelho azul

Era sempre como se espreguiçar numa teia de aranha gigante, pendente do céu. Ou então como rodopiar sem medo de cair. Era como receber o telefonema tão inesperado da pessoa mais adorada. Como dançar com o desajeito de quem não sabe articular em harmonia os pedaços do corpo.
Era só mais uma manhã perdida, empurrada pelo tempo contínuo de uma palavra qualquer. Era só mais um suspiro fundo de uma sede sem fim. Era só um toque na nuca, um vão aberto na alma. Uma manhã de sol lindo, lindo, com algodão espelhado na pele, espalhado no ar, grudado no pulmão. (Breath, breath, little girl, take a deep breath and open your beautiful eyes to me).
Só mais uma manhã, jogada no calendário como um número inútil que engole o tempo. E o som pesado, o marasmo quase choroso, o tédio de uma solidão perdida ali naquele canto onde um coelho azul acabou de se esconder. Sim, um coelho azul, azul. E triste, triste.
Um coelho que corre para o seu castelo de cartas, dentro de uma cerca de vidro, sob um grande lençol quadriculado de promessas e vento. Um coelho azul que fica lá com os seus olhos enormes observando a teia de aranha, o corpo sem articulação, o algodão desperdiçado num sol branco de espasmos. Ele se assusta sempre, com cada estalo das árvores, com cada folha que se joga lá de cima no suicídio natural de se espatifar no chão. Ele se assusta com o azul gêmeo do céu, com os cheiros da realidade, com o gelado de cada gota orvalhada que a manhã lhe cospe, doucement. Ele se assusta, e todo enrolado se encolhe em seu lençol, se apóia
no vidro, se perde nas paredes do seu castelo de puro papel.
Ali era sempre como segurar o coelho azul no colo e afundar os dedos naquelas orelhas de anil aneladas. Era sempre como ter uma incomum bola de pêlos protegida e aquecida entre os braços. Era sempre, sempre como ter um lindo coelho azul amarrado dentro da garganta.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

[...]

“love is touching souls”.

(trecho de A case of you, Joni Mitchell)

*

Como se o silêncio fosse vasto. Como se flores tivessem sido mastigadas. Como se um gesto resolvesse o mundo. Como se houvesse mel dentro do poço. Como se todo o relativo fosse absoluto. Como se o frio cheirasse a corpo. Como se o silêncio fosse vasto.

*

Unirei corações.


segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Sobre “Little Miss Sunshine”

“Who is that? Nietzsche? So you stopped talking
because of Friedrich Nietzsche? Far out”.
(Frank para Dwayne in Little Miss Sunshine)

***

“Everyone, just... pretend to be normal”.
(Richard in
Little Miss Sunshine)

***


Eu ainda não tinha assistido a “Little Miss Sunshine” quando me falaram dele como “um Amélie Poulain, só que americano”. Logo depois que o assisti, por algum desses dias, fiquei pensando se ele realmente seria só uma versão americanizada do “Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain” e, sinceramente, cheguei à conclusão de que a comparação não poderia ser feita assim de um modo tão direto.
É claro que há pontos de contato entre o filme americano e o francês, mas acredito que “Little Miss Sunshine”, por mais que tenha um final positivo e altruísta, toca em pontos mais sensíveis e menos engraçados do que aqueles retratados pela visão peculiar da personagem de Audrey Tatou.
Esses pontos se desdobram sobre assuntos como a incomunicabilidade, o desejo de realizar sonhos impossíveis, a decepção, a falta de atenção entre pessoas que vivem tão próximas, o isolamento e o individualismo (“where's Olive?”), a inocência, o egoísmo, a valorização de padrões de beleza inúteis, o preconceito, a crença em universos falsos, de plástico, de isopor, que desmoronam de um momento a outro. Enfim, é um grande questionamento sobre o que realmente importa, sobre o que vale a pena como valores para a vida e como forma de convivência com aqueles que você ama.
Uma das coisas que me chamou a atenção em “Little Miss Sunshine” foi o encadeamento na apresentação das personagens, ainda no início do filme. Cada uma vai aparecendo com a sua esquisitice maior (“
she's a superfreak”, como diz uma das letras da trilha sonora), com o seu ponto fraco, com aquilo que a faz ser loser num mundo de winners*. A mãe fumante, o pai que filosofa uma alto-ajuda barata, o tio suicida (e também o maior estudante de Proust dos Estados Unidos, remarquemos isso), o irmão adolescente silenciado por uma promessa impossível de ser realizada e mergulhado nas idéias de Nietzsche, o avô viciado em drogas e, claro, a nossa pequena Olive, que sonha em ser miss.
A cena inicial é linda, e a trilha sonora que a segue cai perfeitamente. Olive vendo e revendo uma fita com a reação de uma miss que acaba de vencer um concurso. Olive assiste a essa cena com os olhos acesos atrás daqueles óculos enormes, o rosto redondo e iluminado, em devaneio, num sonho que acaba por envolver toda a família e fazer com que, a partir de uma viagem pra lá de inusitada e, também, a partir da revelação da verdadeira estrutura da família e de cada um deles, eles se unam e percebam que ser diferente, não fazer parte, que sofrer e aprender com isso, enfim, que todas as coisas que todos excluem e desprezam, no final (pasmem!), são as melhores
. E é incrível como eu concordo absolutamente com isso.
Uma das cenas mais fortes é aquela em que Dwayne, irmão mais velho de Olive, descobre ser daltônico. É como um castelo de espuma que vai se desfazendo a cada batida desesperada que ele dá na parte interna do carro. E o castelo implode com aquele grito, que é nosso também. É aquele que você dá quando as coisas não vão bem e a sua vida acaba se quebrando aos seus pés. Mas, talvez, o abraço desajeitado de uma Olive a qual poucos enxergam de verdade nos ponha em pé novamente, pra pegar o carro e voltar a seguir essa viagem ensandecida, seja lá para onde estivermos indo.
Aconselho “Little Miss Sunshine”. Não como uma versão de um famoso filme francês, mas como um filme simples, daqueles que você assiste num sábado à tarde qualquer, ensolarado ou não. Entre naquela kombi amarela, acompanhe Olive na viagem para o concurso Little Miss Sunshine. É o sonho dela. É tanto nesse percurso quanto chegando lá que ela e sua família aprendem o que realmente importa, o que vale a pena valorizar. E talvez a gente aprenda um pouco com eles também.

(A trilha sonora é sensacional).

* ilustro a filosofia por trás do filme.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Bukowski, Miller, Hemingway, Woolf, Kafka, Clarice, Guimarães, Rubião, Tchékhov, Drummond...

Recentemente a leitura de um livro do Bukowski me fez perder a noção tempo-espaço. Conhecendo a dona desse blog como eu conheço, digamos que esse foi um grande feito. Assim, dedico esse post não só ao meu querido e sujo Henry Charles Bukowski (1920-1994), mas também a outros tantos escritores pelos quais cultivo uma enorme admiração.
Eu conheci Bukowski através da leitura de um livro chamado “O Azul do Filho Morto”, de Marcelo Mirisola. Segundo uma resenha que li num site qualquer, o estilo de Mirisola se assemelhava ao dos escritores norte-americanos da
beat generation, dentre eles Bukowski, Henry Miller, Burroughs, Kerouac e etc.
A literatura de Bukowski é uma literatura depravada, bêbada e degradante, além, claro, de ser fortemente autobiográfica. As personagens são sempre cinzas, miseráveis, com álcool e desilusão saindo pelos poros. A linguagem é fluida, muitas vezes cortante e com metáforas incrivelmente inusitadas. Bukowski escreve o que tem de escrever sem meias palavras, abusa de seu forte poder descritivo e pincela em suas narrativas traços de um humor quase triste, mas ainda assim humor. Enfim, uma literatura que cai aos pedaços, largada e bêbada, muito bêbada.

Dessa leva de escritores da geração beat norte-americana, ainda não me aventurei no famoso “On the Road” de Kerouac (1922-1969), mas já mergulhei um pouco em Henry Miller (1891-1980) e nem preciso dizer que adorei. Miller é menos alcoolizado que Bukowski, mas a depravação e a linguagem incisiva continuam as mesmas. O único livro dele que li foi “
Sexus”, parte de sua famosa trilogia “A Crucificação Encarnada” (também com os livros “Plexus” e “Nexus”), e nesse livro eu destaco os enormes trechos que discutem o papel do escritor, da arte e também o papel do próprio fazer literário. Essa trilogia de Miller parece ser, a meu ver, menos famosa do que o par “Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio”, porém desses eu não posso falar nada ainda, pois eles ainda estão na lista dos livros para serem lidos em breve.
Pensando em literatura norte-americana, não posso deixar de também assinalar minha simpatia por alguma coisa de Hemingway (1899-1961). Tive contato com alguns de seus contos há alguns anos. Muito bons.

Em relação à literatura inglesa, além de Poe (1809-1849), deixo em registro a minha adoração por Virginia Woolf (1882-1941). O único problema é que não cheguei a ler nenhuma de suas obras integralmente... Ok, deixe-me explicar. A culpa de tudo é do filme “The Hours” e também do livro “Mrs. Dalloway”, o qual li um terço e tive de abandonar a leitura em razão de outros compromissos (por “outros compromissos” entenda “leituras obrigatórias da faculdade”). É a partir do filme e dessa leitura parcial que surge a minha admiração pela Woolf. Assim, tanto a leitura integral de “Mrs. Dalloway” quanto de “Orlando” também estão na lista mencionada anteriormente.
Bem, Kafka. Ok, eu sei que não é todo mundo que gosta de Kafka (1883-1924) ou que ao menos o entende, mas, preciso dizer: amo Kafka. Já li quase toda sua obra. A poética kafkiniana é paralisante, é pesada, é de sufocar. O poder imenso e invencível que nos limita sem cessar, que
interrompe até o nosso pensamento. Ainda me lembro de “O Veredito”, ou então do aclamado “A Metamorfose”, “O Médico Rural”, os contos, as imagens, o maquinário... Maravilhoso.
Clarice... Clarice (1920-1977) é uma história um pouco mais antiga. Leio a obra dela com
um cuidado e um prazer sem comparação. Tenho o cuidado porque a leitura de suas obras é densa, dolorida. Quem nunca sentiu aquele sentimento amorfo com “A Hora da Estrela”? Ou ainda a densidade de algum dos contos que ela escreveu? O prazer, por sua vez, vem do trabalho que ela faz com a linguagem, aquele fio de palavras que vai se desprendendo como se fosse mágica. Clarice Lispector é leitura pra vida inteira, assim como Guimarães Rosa (1908-1967), outro gigante da literatura brasileira.
Guimarães é do tamanho do mundo. Costumo dizer que a leitura das obras escritas por ele deve ser feita suavemente e em doses homeopáticas. A ordem do universo está ali, e aquela linguagem é pra ser saboreada palavra a palavra. Ainda me lembro do final emocionante de “Miguilim”... Perfeito.
Eu sempre gostei de literatura fantástica. Também de literatura infantil e contos de fada. Melhor, qualquer literatura que envolva o mundo infantil ou qualquer gota de fantasia e imaginação livre que seja. Nem preciso dizer que Hoffmann e irmãos Grimm, além de Perrault, Lewis Carroll e o livro “Le Petit Prince” de Saint-Exupéry fizeram e fazem minha vida mais feliz.
Pode parecer um pouco estranho alguém sentir o mesmo apreço por um conto de fadas dos irmãos Grimm, por um trecho de alguma obra de Bukowski e por algum conto de Kafka ou Poe. Mas, sinceramente, não acho que seja algo tão estranho assim se se pensar na questão das diversas facetas da arte da literatura. Não há como se apegar somente aos clássicos, aos surrealistas ou aos modernos. Cada vertente tem a sua beleza e o seu propósito, e é isso que faz com que o estudo da literatura seja tão interessante.
Ainda no campo da literatura fantástica, gosto muito de Murilo Rubião (1916-1991). Ele consegue montar imagens sem precedentes, fora que os contos dele sempre deixam aquela sensação de indefinição e de que há algo lá que você não conseguiu captar, como se fosse uma mensagem codificada.
Navegando um pouco agora nas águas geladas do hemisfério norte, cheguemos à literatura russa. Essa literatura é aclamada por tanta gente que nem sei se há muito o que comentar. Só ressalto que, ao contrário de muitas pessoas, meu escritor russo favorito não é Dostoiévski (1821-1881), mas sim Tchékhov (1860-1904), que me fez estudar a língua, a história, a cultura e a arte russas por dois anos. E também fez com que eu me apaixonasse pela Rússia, claro.
Tchékhov não é uma leitura para apreensão imediata. A sua linguagem é simples, mas o sentido não é tão acessível. Mesmo assim, ele é ótimo. (Dostoiévski também é ótimo, só que sua grandiosidade reside noutro ponto, que é aquela questão do dialogismo e da polifonia estudada por Bakhtin e etc.).
Deixei o grande Drummond (1902-1987) para finalizar (pois esse post já está ficando um tanto quanto grande demais, não?). Posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que Drummond é o meu escritor maior. Gostaria de tê-lo conhecido ou ao menos o visto pessoalmente uma vez que fosse. Ele morreu dois anos depois de eu ter nascido. Mas um dia ainda vou ao Rio ver aquela estátua dele de perto.
Lembro de uma época em que tive de parar de ler Drummond porque de tão intensa aquela poesia toda estava me fazendo mal. Porém, logo desisti de querer que aquilo não me atingisse de alguma forma que eu não esperasse ou desejasse, pois poesia é isso mesmo. É aperto nos ossos, ar pesado, visão barrada, e tudo isso para que o mundo se mostre mais claro e amplo, para que certas coisas sejam entendidas ou desentendidas para sempre.
Enfim, leia Drummond. Clarice também, Kafka, Tchékhov, Guimarães, Woolf, tantos e tantos. Creio que o importante é só não ficar preso às trivialidades dos jornais, das revistas, dos outdoors e demais variantes, pois a leitura de um livro, qualquer que seja, sempre faz um bem enorme à saúde da mente, da alma.
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sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Les chaussons blancs

Je la vois arriver avec ses chaussons blancs à la main. Elle les met lentement. Elle se regarde. La robe bleue et tiède, les cheveux noirs comme un cri attaché. Tout son corps en rubans et movements. Son âme ouverte pour laisser entrer doucement la musique.
Elle danse. Elle danse comme s'il n'aurait qu'elle dans le monde. Seule, belle. Ses pieds lacés racontent des secrets à l'air. Sa tête pendante, libre. Ses bras qui volent comme des papillons pâles perdues. Les yeux qui parlent en silence. Sa nuque plein de neige, son coeur en flammes vertes. L'univers qui respire léger et se separe. Un vulcan, une brise, une têmpete. Et elle danse et danse. Et sourit.

***

[bande sonore: comptine d'un autre été: l'après-midi, yann tiersen]

sábado, 3 de novembro de 2007

511 dias

Engulo o abandono de Ana aos pedaços. Mas, bulímico, vomito tudo logo depois. Ana. E os nossos cabelos molhados.


Dois de setembro. Quinze horas. Metrô vazio. Ana sentada na cadeira de idosos. Eu, Folha, ela, Caras. Eu, amendoim torrado, ela, jujuba. Eu, estação Anhangabaú, ela, Sé.
Dezenove de setembro. Coincidência? Eu, cadeira de idosos, Ana, em pé. Eu e Ana, estação Liberdade. Escada rolante:
- Oi.
Movimento de cabeça.
- Olá.
Troca de telefones.
Vinte e cinco de setembro.
- Alô. Quero falar com a Ana.
- Não está.
- Não? Quando ela chega?
- Em um ano.
Papel amassado no fundo da gaveta.
Outubro. Babete. Lisa. Carla. As esqueço em quinze dias.
Novembro. Dezembro. Fevereiro. Junho. Outubro. Chuva. Desastres naturais. Vento. Gripe. Paixão passageira. Herpes. Desemprego. Emprego. Desemprego. Acidente. Carro e cara amassados. Onde está Ana? Onde Ana está?
Primeiro de novembro. Hospital. Eu, cadeira de rodas. Ana! repentinamente! na recepção!. Troca de olhares. Espanto. Taquicardia. Grito calado.
Apatia.
Nove de novembro. Combate com o papel amassado. Vitória minha.
Malditas muletas.
Tédio...
Revanche do papel amassado. Luta sangrenta. Ele vence.
Noite.
- Alô. Ana?
- Sim.
- Eh, oi. Paulo. Hospital. Dia primeiro. Cadeira de rodas.
- Metrô? Escada rolante?
- Sim. Tudo bem?
- Tudo. Você?
- Também. Cinema?
- Sim. Amanhã?
- Ótimo. Às oito?
- Certo. Qual estação?
- Sé?
- Ok, até!
Falta de saliva. Trovões. Durmo.
Natal. Ana, olhos azuis, vestido azul. Lençol vermelho. Teto caindo. Corpos amarelos. Gozo. Ana, uma profissional. Eu, apaixonado.
Trinta de dezembro. Ana confinada no meu apartamento. Olhos vidrados. Calma vulgar. Roupas espalhadas. A toco. Ela se desmancha. Ombros perdidos. Janelas fechadas. Palavras.
Trinta e um de dezembro. Eu e Ana enojados. Grudados. Vasculhei-lhe as veias. Ela preferiu meus dedos. Não amanhece.
Primeiro de janeiro. Ana sem voz me esquece enrolado em travesseiros. Não se despede. Agarra-se em trezentos reais. Leva minha foto, as chaves.
Dias de janeiro. Espero Ana sem descanso. Horas em frente ao espelho. Barbudo. Incolor. Acabo com os restos de silêncio que ela deixou.
Vinte de janeiro. Alta madrugada. Ana bêbada se joga ao meu lado. Dormimos abraçados.
Vinte e um de janeiro. Almoçamos cigarros e lágrimas. Ela, conversando com cada pêlo do meu corpo. Eu, abraçando cada pedaço de sua alma. Sozinhos.
Vinte e dois de janeiro. Madrugada. Ana não fala. Eu tento juntar nossos fragmentos. Ela se esquece. Desiste. Eu ainda tento juntar nossos fragmentos.
Vinte e dois de janeiro. Manhã. Ana acorda e abraça o sol. Sorri. Sorrio. Amamos. Nos perdemos. Beijo. Beijo.
Vinte e cinco de janeiro. Estamos práticos. Ela se muda e fica comigo. Compro toalhas. Ana passa horas no banheiro. Eu a agrado. Ela olha. Olha. Digo que a amo. Ela cala.
Vinte e seis de janeiro. Madrugada. Acordo. Cadê os braços de Ana?
Vou ao banheiro. Abro a janela. Ana correndo, sendo atravessada pela faixa de pedestres.
Não grito.

Tempestade, raio.
Ana molhada se perdendo na esquina escura. Sozinha, ausente, fugaz, flutuando no meio do nada. Eu, com a cabeça enfiada na água fria da privada, vomitando sua partida súbita e inexplicável. Definitiva.

[texto escrito em meados de 2006]

“Os Teclados”

Acabei de ler um livro simplesmente maravilhoso. Há tempos a leitura não despertava em mim sentimentos tão parecidos com aqueles que existiam antes de ela ter se tornado um instrumento de trabalho diário. São eles: prazer, compreensão, alívio e, ao mesmo tempo, um pouco de atordoamento. Sobretudo, uma compreensão calada, como se cada palavra, cada descrição estática, cada associação absurda caísse como uma gota de entendimento sobre o seu mundo.
O livro lido é “Os Teclados”, escrito em 1999 pela escritora portuguesa Teolinda Gersão
. Não quero aqui fazer o frio trabalho dos críticos literários de desbravar o texto com um olhar clínico e analítico, quero simplesmente manifestar o êxtase de uma leitora que, novamente, se encontra em seu silêncio com um livro.
Não estou querendo dizer com isso, também, que os livros que li recentemente não me trouxeram certa apreciação estética. Claro que trouxeram. A leitura de “Noites brancas” de Dostoiévski, ou ainda de “Luuanda” de Luandino Vieira ou de “Bom dia camaradas” de Ondjaki foram ótimas, com destaque para a beleza estrutural e irônica do primeiro e para o trabalho com a linguagem nos dois últimos. Porém, foi justamente esse olhar profissional sobre a obra que eu evitei no desenrolar do processo de leitura de “Os Teclados”.
Esse livro é líquido, melodioso, trágico. É poético e lindo. As descrições, as mesclas de realidades, as discussões sobre o caos e o cosmos, sobre o valor de troca no mundo, música, números, letras e literatura, circo, vida em repressão e liberdade, sereias e trapezistas, o mundo em sua ordem e desordem e o nosso papel nele, tudo está lá, latente, inclusive nossa solidão frente às nossas escolhas e renúncias, os sons da natureza, o diálogo entre os teclados... Enfim, um livro magnífico, que vale muito a leitura num sábado à noite qualquer. =)

Pontos

Ponto negro no espaço branco. Mosca sobre tinta. Parede. Teto. Chão. Porta: fechada.
Eu balanço a cadeira, ela me balança. A mosca se assusta, voa. Me encara, vira as costas. Caminho com a unha do polegar em riste. A esmago, mancho a parede. Ponto amarelo sobre o fundo branco.
O computador piscando. Os olhos doendo. O mouse e a mão se apoiando ternamente. Números se pendurando na lâmpada e querendo pular da janela. A fecho, cerro as cortinas. Pego o cadáver da mosca.
Sobre a minha mesa ela jaz. Lhe encaro, viro as costas. Desencavo água do rosto, a engulo. Pisco. Ela se mexe. Não me movo. Asas? Asas. Pego o estilete e furo o polegar. Afogo-a. Ela morre novamente. Impressão digital na parede. Ponto vermelho no branco.
Assim, ponto invisível, parede manchada e ponto morto.

[texto escrito em meados de 2006]
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quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Ontem

O calor escorre das vidraças. Há água condensada nas frontes. Mãos se perdem no ar, agitadas, em busca de vento. Óculos profundos escondem olhos chateados de tanta luz. Pessoas derretem no asfalto. Árvores dançam sonolentas, exibindo folhas que disputam ensandecidas um raio de sol. E o mundo é morno, morno... flamejante. Nuvens tímidas vêm se aproximando, suaves, umas das outras. Travam intimidade, se tocam, se misturam. Fazem festa e resolvem se desaguar em comemoração. Pingos caem enormes e machucam a tarde fervente. Água se espalha por toda parte. Abraçamos o banho violento e abençoado. Agora há vento, muito vento. E os cabelos compridos grudam no ar, suspensos, estáticos, belos. Muita água. E dedos infantis brincam na vidraça escorrida, fria, molhada, quente. Pessoas correm em agitação. (Chuva, chuva, olha a chuva!) E os pingos as perseguem num espetáculo engraçado e barulhento.
Sejamos inundados. E que depois o dia siga, inesperado, pois em vinte minutos o sol brilhará novamente.