segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

“Angústia”

[conto do escritor russo Antón P. Tchékhov]
A quem confiar minha tristeza? (1)
Crepúsculo vespertino. Uma neve úmida, em grandes flocos, remoinha preguiçosa junto aos lampiões recém-acesos, cobrindo com uma camada fina e macia os telhados das casas, os dorsos dos cavalos, os ombros das pessoas, os chapéus. O cocheiro Iona Potapov está completamente branco, como um fantasma. Encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na boléia, sem se mover. Tem-se a impressão de que, mesmo que caísse sobre ele um montão de neve, não consideraria necessário sacudi-la... Seu rocim está igualmente branco e imóvel. Graças a sua imobilidade, à angulosidade das formas e ao perpendicular de estaca de suas patas, parece mesmo, de perto, um cavalinho de pão-de-ló de um copeque. Seguramente, ele está imerso em meditação. Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da paisagem cinzenta e familiar, e atirado nessa voragem, repleta de luzes monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo...
Faz muito tempo que Iona e seu rocim não se mexem do lugar. Saíram de casa ainda antes do jantar, e, até agora, não apareceu trabalho. Mas, eis que a treva noturna desce sobre a cidade. A palidez das luzes dos lampiões cede lugar a cores vivas e a confusão das ruas torna-se mais barulhenta.
- Cocheiro, para a Víborgskaia! - ouve Iona. - Cocheiro!
Estremece e vê, através das pestanas cobertas de neve, um militar de capote com capuz.
- Para a Viborgskaia! - repete o militar. - Está dormindo? Para a Víborgskaia!
Em sinal de consentimento, Iona puxa as rédeas, e a neve cai em camadas de seus ombros e do dorso do cavalo... O militar senta-se no trenó. O cocheiro faz ruído com os lábios, estende o pescoço à feição de cisne, ergue-se um pouco e agita o chicote, mais por hábito que por necessidade. O cavalinho estica também o pescoço, entorta as pernas, que parecem estacas, e desloca-se com indecisão...
- Onde vai, demônio?! - ouve, logo depois, Iona exclamações partidas da massa escura de gente, que se desloca em ambos os sentidos. - Para onde te empurram os diabos? Mantenha-se à direita!
- Não sabe dirigir! Olha a direita - zanga-se o militar.
O cocheiro de uma carruagem solta impropérios; um transeunte, que atravessou a rua correndo e chocou-se com o ombro contra a cara do rocim, lança um olhar rancoroso e sacode a neve da manga. Na boléia, Iona parece sentado sobre alfinetes e aponta com os cotovelos para os lados; seus olhos tontos perpassam pelas coisas, como se não compreendesse onde se encontra e o que está fazendo ali.
- Que gente canalha! - graceja o militar. - Eles se esforçam em chocar-se contra você ou cair embaixo do cavalo. Combinaram isso.
Iona volta-se para o passageiro e move os lábios... Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da garganta.
- O quê? - pergunta o militar.
Iona torce a boca num sorriso, faz um esforço com a garganta e cicia:
- Pois é, meu senhor, assim é... perdi um filho esta semana.
- Hum!... De que foi que morreu?
Iona volta todo o corpo na direção do passageiro e diz:
- Quem é que pode saber! Acho que foi de febre... Passou três dias no hospital e morreu... Deus quis.
- Dá a volta, diabo! - ressoa nas trevas uma voz. - Não está mais enxergando, cachorro velho? É com os olhos que tem que olhar!
- Anda, anda... - diz o passageiro. - Assim, não chegamos nem amanhã. Mais depressa!
O cocheiro estica novamente o pescoço, ergue-se um pouco e agita o chicote, com uma graciosidade pesada. Depois, torna a olhar algumas vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a ouvir. Depois de deixá-lo na Víborgskaia, pára diante de uma taverna, encurva-se sobre a boléia e fica novamente imóvel... A neve molhada torna a pintá-lo de branco, juntamente com o rocim. Decorre uma hora... outra...
Três jovens passam pela calçada, fazendo muito barulho com as galochas e trocando impropérios: dois deles são altos e magros, o terceiro é pequeno e corcunda.
- Cocheiro, para a Ponte Politzéiski! - grita o corcunda, com voz surda. - Damos vinte copeques... os três!
Iona sacode as rédeas e faz ruído com os lábios. Vinte copeques são um preço inadequado, mas, agora, pouco lhe importa o preço... Tanto faz seja um rublo ou cinco copeques, contanto que haja passageiros... Empurrando-se e soltando palavrões, os jovens acercam-se do trenó e sobem para os assentos, os três ao mesmo tempo. Começam a discutir a questão: dois deles irão sentados, e quem vai ficar de pé? Depois de uma longa troca de insultos, manhas e recriminações, chegam à conclusão de que o corcunda é quem deve ficar de pé, por ser o menor.
- Bem, faz o cavalo andar! - grita com voz trêmula o corcunda, ajeitando-se de pé e soprando no pescoço de Iona. - Dá nele! Que chapéu você tem, irmão! Não se encontra um pior em toda Petersburgo...
- Hi-i... hi-i... - ri Iona. - Assim é...
- Ora, você assim é, bate no cavalo! Vai andar desse jeito o tempo todo? Sim? E se eu te torcer o pescoço?
- Estou com a cabeça estalando... - diz um dos moços compridos. - Ontem, em casa dos Dukmassov, eu e Vaska
(2) tornamos quatro garrafas de conhaque.
- Não compreendo para que mentir! - irrita-se o outro moço comprido. - Mente como um animal.
- Que Deus me castigue, é verdade...
- Tão verdade como um piolho tossindo.
- Hi-i! - ri Iona entre dentes. - Que senhores alegres!
- Irra, com todos os diabos!... - indigna-se o corcunda. - Você vai andar ou não, velha peste? É assim que se anda? Estala o chicote no cavalo! Eh, diabo! Eh! Dá nele!
Iona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trêmula do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. O corcunda continua os impropérios e, por fim, engasga com um insulto rebuscado, descomunal, e desanda a tossir. Os moços compridos começam a falar de uma certa Nadiejda Pietrovna. Iona volta a cabeça para olhá-los. Aproveitando uma pausa curta, olha mais uma vez e balbucia:
- Esta semana... assim... perdi meu filho!
- Todos vamos morrer. - suspira o corcunda, enxugando os lábios, após o acesso de tosse. - Bem, bate nele, bate nele! Minha gente, decididamente, não posso continuar andando assim! Esta corrida não acaba mais?
- Você deve animá-lo um pouco... umas pancadas no pescoço!
- Está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de pancada! Não se pode fazer cerimônia com gente como você, senão é melhor andar a pé! Está ouvindo, Zmiéi Gorínitch
(3)? Ou você não se importa com o que a gente diz?
E Iona ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no pescoço.
- Hi-i... - ri ele. - Senhores alegres... que Deus lhes dê saúde!
- Cocheiro, você é casado? - pergunta um dos compridos.
- Eu? Hi-i... que senhores alegres! Agora, só tenho uma mulher, a terra fria... Hi-ho-ho... O túmulo, quer dizer!... Meu filho morreu, e eu continuo vivo... Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi procurar o filho...
E Iona volta-se, para contar como lhe morreu o filho, mas, nesse momento, o corcunda solta um suspiro de alívio e declara que, graças a Deus, chegaram ao destino. Tendo recebido vinte copeques, Iona fica por muito tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele... A angústia que amainara por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os olhos de Iona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua angústia... Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de que, se o peito de Iona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita luz...
Iona vê o zelador de uma casa, carregando um embrulho, e resolve travar conversa.
- Que horas são, meu caro? - pergunta.
- Mais de nove... Por que você parou aqui? Passa!
Iona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à angústia... Considera já inútìl dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor aguda e puxa as rédeas... Não pode mais.
“Para casa”, pensa, “para casa”.
E o cavalinho, como se tivesse compreendido seu pensamento, começa a trotar ligeiramente. Uma hora e meia depois, Iona está sentado junto ao fogão grande e sujo. Há gente roncando em cima do fogão, no chão e sobre os bancos. O ar é abafado, sufocante... Iona olha para os que dormem, coça a cabeça e lamenta haver voltado tão cedo para casa...
“Não ganhei nem para a aveia”, pensa. “Daí essa angústia. Uma pessoa que conhece o ofício... que está bem alimentada e tem o cavalo bem nutrido também, está sempre calma...”
Num dos cantos, levanta-se um jovem cocheiro, funga, sonolento, e arrasta-se para o balde d'água.
- Ficou com sede? - pergunta Iona.
- Com sede, sim!
- Bem... Que lhe faça proveito... Pois é, irmão, e eu perdi um filho... Está ouvindo? Foi esta semana, no hospital... Que coisa!
Iona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo. O velho suspira e se coça... Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém sobre aquilo... É preciso falar com método, lentamente...
É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como ele morreu... É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... É preciso falar sobre ela também... De quantas coisas mais poderia falar agora? O ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar... E é ainda melhor falar com mulheres. São umas bobas, mas desandam a chorar depois de duas palavras.
“É bom ir ver o cavalo”, pensa Iona. “Sempre há tempo para dormir...

Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Iona pensa sobre a aveia, o feno, o tempo... Estando sozinho, não pode pensar no filho... Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável...
- Está mastigando? - pergunta Iona ao cavalo, vendo seus olhos brilhantes. - Ora, mastiga, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno... Sim... Já estou velho para trabalhar de cocheiro... O filho é que devia trabalhar, não eu... Era um cocheiro de verdade... Só faltou viver mais...
Iona permanece algum tempo em silêncio e prossegue:
- Assim é, irmão, minha egüinha... Não existe mais Kuzmá Iônitch... Foi-se para o outro mundo... Morreu assim, por nada... Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu filho... E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo... Dá pena, não é verdade?
O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo... Iona anima-se e conta-lhe tudo...

(1886)

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(1). Versículo de um canto da Igreja Russa.
(2). Diminutivo de Vassíli.
(3). Nas lendas russas, um dragão que representa o mal. No entanto, o nome Gorínitch dá também idéia de tristeza, aflição.

domingo, 2 de dezembro de 2007

“A menina dos fósforos”

[conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen]



Fazia um frio terrível, nevava e começava a escurecer.
Era a última noite do ano, a noite de Ano Bom. No frio e na escuridão, andava, pela rua, uma garotinha pobre, descalça, de cabeça descoberta. Mas os chinelos eram grandes demais, sua mãe os havia usado antes e, de tão grandes que eram, a menina os perdera ao atravessar a rua correndo, no momento em que dois carros passaram a toda velocidade. Não conseguira encontrar um dos chinelos, e o outro, um rapaz levara dizendo que o usaria como berço quando tivesse filhos.
Lá ia pois, a menina, com os pezinhos nus, arroxeados de frio. Trazia num velho avental certa porção de fósforos e segurava um pacotinho deles na mão. O dia inteirinho ninguém lhe comprara um só palito de fósforo, ninguém lhe dera um níquel. Sofrendo frio e fome, a pobrezinha, andando pela rua, parecia apavorada. Os flocos de neve caíam-lhe sobre os longos cabelos louros, que formavam graciosos cachos em torno da nuca - mas a menina estava longe de pensar em cabelos bonitos.
Todas as janelas estavam iluminadas, e chegava até a rua um aroma delicioso de ganso assado, pois era a noite de Ano Novo. Nisso, sim ela pensava.
Por fim, ela encolheu-se num canto, entre duas casas: uma delas avançava mais sobre a rua que a outra. Sentou-se, envolveu as perninhas, mas continuava a sentir frio. Não tendo vendido um único fósforo, não possuindo um único níquel, não ousava ir para casa, onde o pai bateria nela. Além disso, também fazia frio na casa onde moravam - uma casa sem forro, com o telhado cheio de fendas, por onde o vento sibilava, apesar de haverem tapado muitas delas com palha e trapos. Suas mãozinhas estavam enregeladas. Um pequenino fósforo lhes faria bem. Pudesse ela, com os dedos duros, puxar um fósforo do pacotinho, riscá-lo contra a parede e aquecer os dedos! Conseguiu-o, afinal; tirou um e riscou-o. Como o fósforo ardeu e crepitou! A chama clara e quente parecia uma velinha, quando a envolveu com a mão. Era uma luz estranha. A garotinha imaginou estar sentada em frente a uma grande lareira de ferro, com adornos e um tambor de latão polido. O fogo crepitava alegremente e aquecia tanto... Que beleza! A pequena já ia estendendo os pés para aquecê-los também... quando a chama se apagou e a lareira desapareceu. Ela estava sentada na rua, com um pedacinho de fósforo queimado na mão.
Riscou novo fósforo, que ardeu, claro, brilhante. Onde o clarão incidiu, a parede tornou-se transparente como um véu. Ela viu então o interior da casa, onde estava posta uma mesa, com toalha muito alva e fina porcelana. O ganso assado fumegava, recheado de ameixa e maçãs e, o que foi ainda mais extraordinário, de repente o ganso pulou da travessa e saiu cambaleando pela sala, com o garfo e a faca espetados nas costas. Veio vindo assim até ao pé da menina pobre. Aí o fósforo se apagou, e só se via a parede, grossa e fria.
Ela acendeu outro fósforo. Viu-se sentada sob os ramos da mais linda árvore de Natal. Era ainda maior e mais enfeitada que a árvore que ela vira através da porta envidraçada, na sala do rico negociante, no Natal passado. Milhares de velas ardiam no ramos verdes, e figuras coloridas, como as que adornam as vitrinas das lojas, a fitavam. A pequena estendeu as mãos para o alto - mas nisso o fósforo se apagou. As velas de Natal foram subindo, cada vez mais, e ela viu que eram estrelas cintilantes. Uma delas caiu, traçando um longo risco de fogo no céu.
- Deve ter morrido alguém - disse a pequena.
A velha avó, única pessoa que lhe quisera bem, mas já estava morta, costumava dizer: “Quando uma estrela cai, sobe aos céus uma alma”.
- A menina tornou a riscar um fósforo contra a parede. No clarão produzido em volta, ela viu, radiante e iluminada, a velha avó, meiga e bondosa.
- Vovó! - gritou a pequena. - Leva-me contigo! Sei que não mais estarás aí quando o fósforo se apagar. Desaparecerás, como a boa lareira, o delicioso ganso assado e a grande, linda árvore de Natal!
Riscou às pressas o resto dos fósforos que havia no pacotinho, para ter a avó ali a seu lado e retê-la. O clarão dos fósforos tornou-se mais intenso que a luz do dia. Nunca a avó fora tão grande e bela. Ergueu a manina nos braços e as duas voaram, felizes, para as alturas, onde não havia frio nem fome, nem apreensões, voaram para junto de Deus.
Quando raiou a manhã, muito fria, encontraram ali no cantinho, entre as duas casas, a menina, com as faces coradas e um sorriso a brincar-lhe os lábios. Estava morta, gelada. Morrera de frio na última noite do ano velho. A aurora do Ano Novo brilhava sobre o pequenino cadáver, que jazia com os fósforos nas mãos. Um maço inteiro estava queimado.
- Ela quis se aquecer-se - disseram.
Ninguém sabia que maravilhas ela vira, nem imaginava o esplendor que a cercara, com a velha avó, nas alegrias do Ano Novo.