sexta-feira, 25 de setembro de 2009

“uma coisa, despretensiosa”


Na obra de arte autêntica o artista inventa sempre. Uma vez terminada, a obra torna-se outra coisa. Pois, de uma forma ou de outra, a arte é sempre um começo*. Quem disse isto não foi uma mulher: foi Picasso. Um que agüentava melhor do que ninguém o desafio de começar do nada, a partir da sucata, do lixo, do papel rasgado, e produzir – sobretudo em sua escultura – não o monumental mas o efêmero, não o objeto pronto e acabado que simula a Coisa mas uma coisa, despretensiosa - assim mesmo, com letras minúsculas. Dar forma ao que não existia: criar uma coisa capaz de revelar, em sua precariedade proposital, o próprio truque do artista que transforma os restos e dejetos da civilização em idéia, em forma nova; que transforma o lixo em graça, em vida, em movimento. Nas esculturas, e sobretudo nas colagens de Picasso, a obra é ao mesmo tempo a coisa inventada e a brincadeira que a originou. Uma mulher feita de telha, pedaços de cano, restos de madeira e um galho seco, certamente não se pretende forma eterna e realizada. Mas realiza a eternização do gesto livre que lhe deu origem.


*Citado em: Picasso Sculptéur, catálogo da exposição de mesmo nome no museu Beaubourg, Paris, 2000.


(Maria Rita Kehl, trecho do artigo O peso da feminilidade, 2003).

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

rosa, g. sertão, veredas.

[a t.]


“Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor”.


(p. 196)


segunda-feira, 7 de setembro de 2009

de móbiles, cataventos e potes de estrelas



quando acordei, abri logo a janela pra ver se era dia de sol ou dia de chuva. o vento fez de repente barulhos no móbile azul e gomos de sol despencaram sobre mim. era dia de sol e desesperanças. percebi imediatamente que eu preferiria hoje um dia nublado.

minha priminha de cinco anos tá aqui no meu quarto, mexendo nas coisas. ela achou um globo que tenho, bem pequeno. eu disse que ele girava, ela o girou um pouco e me perguntou: “é assim que faz o nosso planeta, né?”. “é, sim. a gente fica girando. igual ao catavento”. “e por que a gente não cai?”. e daí eu tentei explicar a lei da gravidade (péssimo, eu sei). ela fez que entendeu. e então ela encontrou um potinho cheio daquelas estrelinhas de plástico que brilham, da época em que eu ficava fazendo artesanato com papel. ela achou lindo. dei pra ela o pote de estrelas. ela achou também as bexigas murchas ainda do meu aniversário, que estavam escondidas perto do violão. achou a vela de gel que ganhei há muito tempo. eu demorei tanto pra acender essa vela que acho que hoje ela nem acende mais. agora ela achou um patinho de pelúcia, bem amarelo e torto, que comprei pra dar de presente e nunca cheguei a dar. “ele fala?”. “não... ele tinha um botãozinho que acendia, agora acho que não funciona mais”. “pode levar?”. “pode”. “vou colocar na minha bolsa”. e ela fica subindo e descendo a escada, perguntando o que faço no computador, olhando os livros na mesa, brincando com o boneco do johnny, o bravo que ganhei de um amigo. hoje minhas irmãs e minha prima, mãe da minha priminha de cinco anos, foram passear no parque do ibirapuera. eu não fui. é difícil sair do moletom, de casa. quando voltaram, trouxeram dois cataventos. agora ela achou o suporte onde guardo as lentes de contato que me ajudam a enxergar. “quê isso?”. “ah, é onde eu guardo as lentes. tem gente que usa óculos pra ver direito, eu uso lentes. pode abrir, mas cuidado com o líquido que tem dentro”. ela faz cara de dúvida. “quer ver como é?”. “quero”. “não vai ficar com medo se eu tirar pra você ver?”. ela olha. “não”. tiro a lente do olho direito e ela faz uma cara de “uau”. a mãe dela sobe e avisa pra se despedir. “mãe! mãe! olha!”. pra mim: “faz de novo!” eu tiro a lente e ambas ficam olhando. “mãe, a minha amiga mariana usa óculos de grau”. quando elas chegaram do parque e eu vi os cataventos, um dela e outro da minha irmã, perguntei brincando por que não tinham trazido um pra mim. mas não era bem uma brincadeira. foi que, quando vi os cataventos, veio uma saudade funda na boca, na mente as tardes da infância surgiram, aquelas onde eu ficava sonhando em ter um catavento. até que aprendi a fazer um. lembro que sempre gostei das coisas que de alguma forma voavam. fiz balõezinhos de sacola plástica, pára-quedas onde a gente amarrava uma caixa de fósforo vazia com uma pedra dentro pra dar peso e fingir ser soldado. soltei pipa uma ou duas vezes, sempre com a supervisão dos meninos vizinhos. pirocópteros! como eu juntava moedas pra comprar pirocópteros! aliás, pirocópteros, maria-mole e umas balinhas coloridas que eram puro açucar e vinham dentro de um tubinho plástico. mas os pirulitos com aquela hélice na ponta eram os melhores. adorava ficar girando aquilo e disputando qual ia mais alto. pena que eu tinha o azar de que sempre caiam no telhado. e quando chovia, ficavámos na janela pra ver onde os pirocópteros iam cair com a água no telhado levando tudo. assim que acabava a chuva começava a correria pelo quintal pra ver quem conseguia recuperar mais pirocópteros perdidos. minha priminha veio se despedir. veio logo com um abraço. daí eu suspendi ela no ar e apertei forte. “da próxima vez eu vou no ibirapuera com vocês, tá? e vê se cuida do catavento”. “quando eu achar um na feira eu pego (pra você), tá?”. acho que ela ouviu a minha brincadeira sobre o catavento. e de repente me deu uma vontade grande de chorar e de ter um filho.


não sei porque o dia hoje não foi nublado.