domingo, 28 de setembro de 2008

| viagem pra dentro da íris |

De trás da cerca de madeira espetou o dedo no prego achando que era espinho de flor. Com a dor despertou e viu a velha cerca coberta de musgo, a madeira posta na ordem triste do que não pediu pra acontecer. Procurou a flor que jurava estar ali. Percebeu que era só devaneio e pisou com força o pé no chão. O prazer da terra molhada se espalhou pelo seu sangue, machucou com cor seus lábios pálidos, incandesceu seu rosto que se virou para o céu. Olhou e viu o sol, correu a pupila pelo algodão borrado das nuvens, apertou o dedo machucado com o coração. (“Mas o coração é só um órgão, mãe”. “É sim, meu filho, mas é o mais dolorido de todos”). Caminhou ainda três passos com a pele tatuando a terra, com os olhos perdidos no manto do céu. Dentro dos três passos ensaiou uma pequena dança por dois continentes, arrastou sua mente por dunas azuis, se levou para o longe dentro do eterno. Ficou assim parado em vôo num canto do jardim, descalço e sozinho, com sangue pelos dedos e sol a se espatifar nos olhos. Decidiu não voltar, e saiu correndo atrás de sua flor.

*

sábado, 27 de setembro de 2008

setembro, quinta

(a um anjo barroco)

eu poderia ter escalado o muro, quebrado os tijolos do nosso silêncio, afastado todo o concreto do meu orgulho e da tua resistência. eu poderia ter segurado teu olhar nos meus olhos por mais tempo, poderia ter desatado meu pescoço, te chamado com um “olá” sem jeito pra conversar de canto. eu poderia ter escalado os pilares do meu medo, esculpido algumas palavras, ensaiado suaves gestos. eu poderia ter feito muitas coisas. poderia ter mudado o curso de um rio inteiro e assim criado uma floresta densa do outro lado da margem. pena que pra mim já é o fim da primavera. pena que na noite já o fim da quinta-feira.


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“pasárgada não existe!”: diálogo

(para gabriela)



g: (chegando com ares de novidade e espanto) você não sabe... pasárgada não existe!

s: ?... ?!...?!?! [*“como é que ela me fala uma coisa dessas sem preparar meu coraçãozinho frágil?”*] como assim?

g: não, eu descobri que... me contaram que pasárgada não existe porque é o lugar onde você gostaria de estar ao invés de estar onde está.


s: [*...entendendo...*] ah, sabe o “le petit prince”? então, lembro de uma frase dele que fala sobre isso.

g: eu não lembro...

s: peraí..., eu acho que é assim: “on n’est jamais content là où on est”. só não lembro o capítulo... procuro ainda hoje e te mando.

g: é, então...

s: mas isso é verdade, a gente sempre tá querendo estar em outro lugar. é essa coisa da eterna busca humana, sabe?

g: é... mas pasárgada não existe... [*“para onde vou agora?”*]

(na porta da geladeira)

“mãe, sei que você não tá aqui. tô sentindo falta do teu beijo de manhã, do pão com queijo derretido, do teu cheiro de lavanda e leite morno. sei do seu barulho e agitação, da limpeza bagunçada da casa, dos legumes com o monte de vitamina que a gente sempre precisa comer. mas o que falta mesmo é o teu colo, tua risada que estala, tua vontade de contar história, a cama forrada com lençol limpo e com aquela dobra que você sempre deixa pra sussurrar baixinho “vem-dormir” no ouvido da gente. mãe, vê se vem logo. tô te esperando. abraço com beijo. aparece. saudade chata. a roseira floresceu de novo. tem laranja. sábado vai chover. te amo”.


terça-feira, 16 de setembro de 2008

Sentidos II


Nem sempre quando acordamos temos em nós o pleno sentido das coisas, das pessoas, do mundo, da existência ela inteira em si.
O cotidiano ligado num piloto automático, com sua mecanicidade e velocidade, com a precisão de uma máquina enferrujada e precária que insistimos ser perfeita, nos torna rígidos, insensíveis e impenetráveis como uma chapa de aço.
Concordo que isso talvez seja um sistema de defesa, para não se absorver por completo a ilogicidade da realidade, para absorvê-la somente em pequenos fragmentos. (Doses homeopáticas das coisas confusas e surreais que não temos a plena capacidade de compreender).
Pode ser por isso que refletimos tão pouco, que não nos permitimos nos distanciar e olhar com estranhamento para o mundo. Se pensássemos na imperfeição da realidade com mais freqüência, se nos deslocássemos mentalmente da banalidade da nossa rotina,
teríamos problemas em encontrar certos sentidos, certas significações para coisas e eventos que, antes, nos pareceriam normais.
A normalidade é facilmente destruída se observada por um olhar mais torto, um olhar mais aguçado e sem receios. O interessante é que, quando perdemos nossas referências do que é normal, os alicerces que moldavam o chão onde costumávamos pisar toma um ar amorfo, se torna nebuloso e desfigurado. É como se a engrenagem da máquina que nos move emperrasse. Você fica lá, eterno, esperando o conserto que trará de volta seus sentidos perdidos.


Assim, dica: não absorva o mundo sinestesicamente, faz mal.


[post confuso e sem sentido (não foi de prepósito)]

Sentidos I


Não é bom ficar guardando o sentido. Os tantos sentidos com as marcas alaranjadas do passado, com sua poeira colecionada cuidadosamente grão a grão. Os sentimentos que não existem mais catalogados todos em prateleiras, numerados, classificados de acordo com sua intensidade e relevância. Sentidos perdidos lá dentro, como uma biblioteca labiríntica que visitamos quando bate a saudade triste de repente.
Esses sentidos, em sua maioria, surgiram porque algum dos cinco sentidos foram despertados bruscamente. Foi um cheiro que passou correndo e você agarrou sem saber, foi o esbarrão que na hora doeu mas que depois não doeu mais a não ser na lembrança, o gosto diferente daquele chocolate que te deram sem você querer, a palavra que só você ouviu ao acaso, aquilo que só você fez questão de olhar.
É a vida latente dos primeiros sentidos, provocados pelos segundos sentidos, que faz com que você perca o sentido para onde estava indo,
ignore os sentidos para onde irá e dê sentido para cada dia que você acorda não vendo sentido algum.

domingo, 14 de setembro de 2008

Let’s talk about hate and pity

Um pouco de cotidiano, vamos lá. Domingo frio em SP, semana cheia e complicada pra começar amanhã e eu que deveria estar terminando de ler “La dame aux camelias” (Alexandre Dumas) no meu francês très bien e fazendo uma resenha sobre algum dos muitos textos na minha pasta que discorrem sobre leis e direitos da educação no Brasil. Just one more glorious sunday, I’d say.
Mas, ao invés de estar mergulhando meus grandes olhos num pouco de cultura, cá estou eu pelas janelas pululantes da Microsoft, lendo pela Internet textos que as pessoas escrevem e doam ao poderoso tio Google.
O interessante é que a gente sempre acaba encontrando algumas surpresas nesses passeios pela web. Hoje até plágio eu achei, olha que legal. O engraçado é que eu realmente não ligo para direitos autorais. Como já dizia Gabriel García Márquez, as frases estão sempre navegando sem dono pelos ares, é só levantar os dedos e agarrá-las. A questão é que depende muito de quem faz a cópia e, no caso em questão, a minha surpresa não foi nada agradável.
Enfim, mas nada disso vale meu domingo, meu ódio (que é sempre) momentâneo, minha piedade sem graça ou este post.

Acho que foi só pura vontade de gastar caracteres mesmo.
=)



[roxo e verde pra compensar o post cinza]

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Centopéia

Mamãe sempre me mandava muito cedo pra escola. Ia eu com aquele monte de caderno e sono tropeçando pela grama. Eu só gostava mesmo do cheiro dos lápis de cor que ficava na folha branca que a tia dava no final da aula pra gente desenhar. Aliás, gostava mais era de ficar guardando papel de bala e chiclete no estojo só pra chegar em casa e mostrar pra Leléia (minha tartaruga) o quanto eu tinha comido de doce.
Mas teve um dia que tudo ficou estranho. Eu ainda lembro da manhã de garoa fria, dos gorros pelas cabeças de todo mundo. Cheguei na escola bravo por ter saído da minha cama quentinha só pra ficar repetindo umas coisas que chamavam de vogais, tudo letra boba que sempre me deixava com mais sono. E ainda por cima era dia de recorte, o que dava a maior briga na sala pela tesoura e pela cola.
Peguei uma revista, fui procurando as letras, olhando o desenho delas e vendo se achava umas tais de palavras que diziam estarem lá. A tia passou distribuindo as tesouras nas mesas da frente e começou o alvoroço. Alvoroço barulhento que de repente perdeu voz. Tudo ficou quieto. Alguma coisa explodiu e desamarrou de mim. Uma dança louca acontecia na minha cabeça enquanto eu olhava a página da revista, atônito. Palavras... Eu tinha encontrado as palavras! Vi as letras todas espertas se grudando, me agarrei nas sílabas, respirei. Assustado, percebi que estava entendendo: “pre-ço dos le... gu-mes”.
Foi horrível. Contei pra professora, desesperado. Ela me deu um abraço apertado, falou de mim-todo-vermelho pra classe, escreveu bilhete no meu caderno. Na volta pra casa, fiquei sem ação na frente de toda letra que eu via até ela puxar as outras e eu ver uma palavra. Eu não conseguia mais parar de procurar palavra por tudo quanto era canto do caminho.
Chegando em casa, minha mãe leu o bilhete e começou a rir e a chorar. Pegou um papel e ficou escrevendo bem grande um monte de palavras que eu lia pra ela em voz alta. Só que de repente, na mesa, bem do lado da mão dela, um bicho gigante-feio-nojento e com muitas mil patas vinha se aproximando. Eu dei um grito e um salto pro lado. Grudei na parede.
Minha mãe, com aquela calma doce dela, disse que não era pra eu ter medo, pois era só uma centopéia que devia ter vindo do jardim. “Uma o quê, mãe?”. Ela pegou o lápis e escreveu no papel. Eu li: “cen-to... pé-i-a”. Olhei o bicho deslizante. Meu medo se misturou com simpatia. Na minha simpatia juntou tristeza. Descobri que o bicho era aquela palavra cheia de letras. Era só aquilo.
Perdi o medo.
Perdi a simpatia.
Ficou só a tristeza. Tristeza de descobrir que a imensidão de todo o desconhecido que me amedrontava e me fascinava ia pra sempre caber dentro da simplicidade definitiva das palavras.
Saí correndo e fui contar tudo pra Leléia.


sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Fragmentos # 07

[pela minha impossibilidade momentânea de escrever textos inteiros,
seguem os pedaços de inspiração que ficaram no inacabado]

*

.aurora borealis.

Ontem tuas digitais encontraram meus poros.

*

La coccinelle dans tes cheveux
(A joaninha nos teus cabelos)

Sonhei com você e eu. Você de preto me abraçando apertado. Eu olhando tua sapatilha vermelha querendo fugir da grama pra me alcançar. Você cheirando a dezembro e infância, e eu chorando as lágrimas redondas da nossa saudade.

*


quarta-feira, 3 de setembro de 2008

.minha coleção de palavras.

[em permanente atualização]

#

“nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. o que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos (...)”.
(nas águas do tempo, mia couto)

“em qualquer lugar que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera”.
(cem anos de solidão, gabriel garcía márquez)

“– as idéias não são de ninguém – disse. com o indicador, desenhou no ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: - andam voando por aí, como os anjos”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“esperas uma carta de fogo
que te restitua o amor
e te remova do caos”.
(manhã metafísica, murilo mendes)

“o corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“a paixão é o mundo a dividir por zero”.
(os infelizes cálculos da felicidade, mia couto)

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa”
([sem título], paulo leminski)

“há sempre um amor procurando seu nome
na solidão do livro dos tempos”.
(temas eternos, murilo mendes)

“(...) o amor era um sentimento contra a natureza, que condenava dois desconhecidos a uma dependência mesquinha e malsã, tanto mais efêmera quanto mais intensa”.
(do amor e outros demônios, gabriel garcía márquez)

“amar o perdido
deixa confundido
este coração”.
(memória, carlos drummond de andrade)

“seu corpo falava pelos olhos. e que olhos cristalindos!”
(joãotónio, no enquanto, mia couto)

“tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha”.
(o homem público nº 1, ana cristina césar)

“tua cabeça é uma dália gigante que se desfolha nos meus braços”.
(estudo nº 6, murilo mendes)

“sempre no meu amor a noite rompe.
sempre dentro de mim meu inimigo.
e sempre no meu sempre a mesma ausência”.
(o enterrado vivo, carlos drummond de andrade)

“aposto que o senhor não sabe chorar direito. chorar tem as suas técnicas, doutor. eu tenho muita certeza neste assunto. me formei em tristezas, sou cursada. a dor o que é? a dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura, para chegar a um outro lado. e esse lado é uma parte de nós que não conhecemos. eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...”.
(os olhos fechados do diabo do advogado, mia couto)

o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva”.
(a condição humana, hannah arendt)

“olhou os estrelejos no céu. as estrelas são os olhos de quem morreu de amor. ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades”.
(o perfume, mia couto)

“mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado”.
(o amor nos tempos do cólera, gabriel garcía márquez)

“ainda o que nos vale é sermos capazes de chorar, o choro muitas vezes é uma salvação, há ocasiões em que morreríamos se não chorássemos”.
(ensaio sobre a cegueira, josé saramago)

“– adieu, dit le renard. voici mon secret. il est très simple: on ne voit bien qu’avec le cœur. l’essentiel est invisible pour les yeux.
– l’essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince, afin de se souvenir.
– c’est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.
– c’est le temps que j’ai perdu pour ma rose... fit le petit prince, afin de se souvenir.
– les hommes ont oublié cette vérité, dit le renard. mais tu ne dois pas l’oublier. tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. tu es responsable de ta rose...
– je suis responsable de ma rose... répéta le petit prince, afin de se souvenir”.
(le petit prince, antoine de saint-exupéry)

“estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. a terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. há quantos anos não chovia assim? de tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. o céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. a gente indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?”
(chuva: a abensonhada, mia couto)

“descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco”.
(memória de minhas putas tristes, gabriel garcía márquez)

“às vezes numa pequena coisa pode-se encontrar todas as coisas grandes da vida, não é preciso explicar muito, basta olhar”.
(bom dia camaradas, ondjaki)

“não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas”.
(o fim das coisas, carlos drummond de andrade)

“sempre vivi carente de alguma coisa. desassossegado, querendo tudo de uma vez, lutando rigorosamente por algo mais. estava aprendendo a não ter tudo de uma vez. a viver quase sem nada. do contrário continuaria com minha visão trágica da vida. por isso agora a miséria não me fazia muito mal”.
(trilogia suja de havana, pedro juan gutierrez)


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