domingo, 28 de outubro de 2007

Tornando o blog público?!

Confesso que é bem estranha essa resolução de tornar público o acesso ao blog. É o tipo de coisa que não faz muito o meu gênero... Mas tenho alguns motivos plausíveis para decidir dessa maneira. Assim, leitor, seja bem-vindo a estas páginas inúteis. =)

O “àlatombée...”, que existe desde 2006, sempre foi público. Entretanto, ao voltar à ativa em Abril de 2007, depois de seis meses de desatualização, teve o acesso restrito a uma única pessoa, ou seja, a mim.
O que aconteceu foi que, assim como o meu profile no Orkut, o blog se transformou numa espécie de gaveta onde se colocam as coisas para organizá-las e, assim, não esquecê-las pelo caminho. Eu tenho as minhas manias de listas e classificações, e isso se reflete numa página do Orkut que mais parece um baú onde se joga tudo aquilo com o que já se teve algum contato e se apreciou e, obviamente, se reflete aqui também: um blog que mais parece um arquivo velho de escritos, um registro antigo de textos variados, enfim, um grande caderno amarelado e rabiscado.
As razões para descortinar esses textos e permitir que outras pessoas dêem seus cliques por aqui são, principalmente, duas. A primeira se relaciona com uma conversa que tive recentemente com uma amiga. A conversa girou basicamente sobre a imagem muitas vezes distorcida que as pessoas têm umas das outras.
Esse é um ponto interessante nas relações humanas, pois nem sempre gostamos da imagem que o outro forma de nós. Porém, ao mesmo tempo, não somos o que achamos que somos, mas na verdade somos justamente essa construção que os outros fazem da gente.
O impasse surge quando sabemos, de alguma forma, que essa imagem está completamente errada e, assim, isso começa a nos incomodar. Geralmente, a solução encontrada é fazer algo para mudar essa imagem de acordo com o que achamos mais coerente, afinal, é a identidade do nosso “eu” em sociedade que está em jogo.
Você pode me perguntar: ok, mas e o que tudo isso tem a ver com um simples blog?
E eu respondo: quando escrevemos, querendo ou não, expomos não só a nossa visão de mundo, mas um pouco de nós mesmos nas nossas palavras. Quando se escreve, se desenha uma imagem que, na minha opinião, ajuda no conhecimento de um outro ser, de uma outra mente. Eu particularmente não tenho a mínima idéia da imagem que têm de mim (e prefiro continuar sem saber), mas gostaria que essa imagem não fosse, talvez, desprovida de oportunidades de lapidação, aprofundamento ou pluralidade. Às vezes, você não imagina que fulano goste de
x ou conheça y, mas ele gosta e conhece, e isso faz com que o seu conhecimento dele, precário ou não, vá se moldando de uma forma mais coerente. Ficou mais ou menos claro?
A outra razão também veio de uma outra conversa, essa um pouco mais antiga. Ela dizia respeito ao poder da criação e da arte como meios de modificação e atuação no mundo. Nos detivemos, mais especificamente, sobre o porquê de sempre engavetarmos tudo aquilo que fazemos. Por que sempre achamos que está ruim? Por que não mostrar para alguém? Por que enclausurar idéias, projetos, sonhos e possibilidades simplesmente por acreditar que não vale a pena? Todos esses questionamentos saíram de um trio onde: uma escreve peças de teatro, roteiros de filmes e até livros, o outro é músico e compõe e, bem, eu, que não faço nada com nada.
Enfim, a conversa era essa e ela me fez pensar nas possibilidades de ação e reflexão que as coisas que fazemos e engavetamos podem estar deixando de gerar. Eu sempre digo: escreva, desenhe, cante, dance, se expresse. Não esconda aquilo que faz, não esconda o seu poder de criação em meio a um mundo em que tudo se compra pronto. O que você faz pode trazer uma vírgula que seja de diferença no espaço do universo e, acredite, só esse pouquinho já vale a pena.
Dessa forma, estou abrindo as portas dessa bagunça aqui principalmente por esses dois motivos. Isso não quer dizer de forma alguma que eu tenho a intenção de mudar uma vírgula no universo com essas palavras (quem sou eu para fazer isso?), muito pelo contrário, acho esses textos uma grande perda de caracteres (e de tempo). E como sei que posso em breve me arrepender de tornar o blog público, ficarei com a chave a postos para, em meio a qualquer eventualidade, esconder tudo novamente. =)
Desde a semana passada estou arrumando a casa, varrendo, limpando, organizando tudo. Editei alguns trechos de posts, terminei outros vários que estavam inacabados, mas essa tarefa é um processo que demanda um tempo que nem sempre tenho disponível e, por isso, alguns poucos posts ficarão momentaneamente inacessíveis. Peço desculpas por isso.

Assim, novamente, seja-bem vindo! (seja lá quem você for).
Leia, rabisque seus comentários, critique, questione, corrija, importune, passeie à vontade. Movimente isso aqui nem que seja só com os seus olhos cansados percorrendo a tela. Está tudo aí: palavras soltas sobre música, filmes, livros, textos sobre nada, contos, textos nonsense, fotos, letras, vídeos... Divirta-se! (ou não...). =)

Até!

Post-insomnia insignificante

Nada como escrever de madrugada. 1h30 da manhã de mais um domingo lacunar. Um “putz-putz” no vizinho denuncia uma festança daquelas, e aí a gente, que está com o mundo entalado na garganta e queria tanto falar e falar tudo e todos, coloca um pouco de Legião para sair do fone como companhia e aumenta o volume ao máximo. Ok, concordo que “Clarisse” não é uma companhia ideal para uma madrugada, mas até que já foi há uns anos... Melhor colocar “Marcianos invadem a Terra” e depois repetir “Mariane”. É, bem melhor.
Às vezes são engraçadas as lutas que acabamos travando conosco. Sempre acho um momento curioso essas batalhas entre as diversas partes que tentam nos compor como um todo, nem sempre coerente ou coeso mas, enfim, ao menos uma tentativa de todo. Somos um todo fragmentado em pedaços, uns aqui, outros acolá. E é interessante também como esses pedaços deixam rastros, ou até mesmo se deslocam e migram para um outro ser, seja ele qual for. Deixamos pedaços nos outros e recebemos pedaços. São as marcas, as pegadas de algo ou alguém que passou por ali e significou alguma coisa em seu trajeto.
Bem, estou escrevendo a esmo... O “putz-putz” deu uma trégua e “Sagrado coração” é uma boa música instrumental... “High noon (do not forsake me)” também, só que ela sempre me faz acionar imagens medievais ou renascentistas na mente, bailes e guerras, aquele cerimonial todo de um passado mais do que remoto... E, falando em músicas instrumentais, hoje escutei Sigur Rós. Há tempos não escutava “Glósóli” ou “Gong”... Enfim.
“Acrilic on canvas” pra mim é totalmente surrealista. Adoro essa música. Totalmente Dalí. E um pouco melancólica também. “Eu juro que nunca quis deixar você tão triste”. É, melancólica.
Viagens, viagens musicais na madrugada... Sim, eu sei, ninguém merece. Vou mudar de tópico. Aliás, seria mais proveitoso se eu tentasse terminar uns posts atrasados... Ótima idéia, vou fazer isso.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

“In rainbows”

Sim, leitor, pois é: Radiohead.
As minhas audições do novo álbum do Radiohead, “In rainbows”, estão se desenrolando suavemente e muito bem, obrigada.
O meu período ainda não totalmente superado de desinformação em relação ao mundo, incluindo nessa cesta a cena musical como um todo, infelizmente me impediu de acompanhar a expectativa, especulações e as reações frente à chegada desse álbum.
Mas, mesmo assim, acho que isso não fará diferença frente às minhas sensações relacionadas à primeira audição, que deixaram um leve sabor de gostei-das-músicas-finais-e-das-iniciais-será-um-processo-à-la-“Idioteque”. Ok, deixe-me explicar, é simples.
Quando escutei “Idioteque” pela primeira vez, eu sinceramente não gostei. Entretanto, hoje ela é muitas vezes a primeira música da lista quando penso em escutar Radiohead na playlist do Windows Media Player. Desse modo, a primeira audição do início do “In rainbows” me deixou com esse sabor de não-gostei-mas-vou-gostar que, agora, já depois de algumas audições, está se confirmando. Já estou apreciando de verdade a primeira parte do álbum que, como um todo, tem se mostrado como uma ótima companhia.

Música a música:

15 step”: o álbum começa num tom de rave-africana-espanhola. Não sei, essa é a minha impressão. Ela tem o aspecto eletrônico, a alegria e essa batida quase de dança flamenca. É uma música pra se sair rodopiando. Há momentos em que certas características dela se acentuam mais e outras menos, e quando mistura tudo... Fica bom. O aspecto eletrônico não ficou muito marcado, o que a deixaria deslocada e estranha para ser a primeira do álbum.
trecho da letra: “you used to be alright / what happened?”.

Bodysnatchers”: uma espécie de continuação de “15 Step”, só que mais agitada. Essa sim dá pra sair dançando por aí. A voz do Thom Yorke está mais rock n’roll nessa música do que em qualquer outra. É a música mais pulsante do álbum todo. É só sair se balançando. Quando ela chega na metade... A parte instrumental destoante do resto... Muito bom! Vamos lá, gira e gira e gira...!
trecho da letra: “I have no idea what you are talking about / I'm trapped in this body and can't get out”.

Nude”: uma música sintética e lírica, feita de plástico derretido. A voz do Thom Yorke parece mais incisiva com o acompanhamento dos instrumentos fazendo um som ácido. Linda música, linda letra. O finalzinho dela me fez lembrar de “How to disappear completely”.
trecho da letra: “now that you've found it, it's gone / now that you feel it, you don't”.

Weird fishes / arpeggi”: essa aqui começa no estilo vamos-balançar-os-braços-e-mexer-os-pés. Ela continua nessa levada e parece que estamos num mar de ondas elétricas e suaves, com ecos e uma movimentação rítmica constante e quase ensurdecedora. Bom final, com o trecho em suspenso.
trecho da letra: “in the deepest ocean / the bottom of the sea / your eyes / they turn me”.

All I need”: primeira música que escutei. Ela tem um fundo sonoro um pouco duro no início, mas que é quebrado perfeitamente com uma voz doce e uma bela letra. O refrão parece a entrada num castelo, com um pouco de magia espalhada displicentemente. Ela mantém os barulhos sintéticos ora ou outra, o refrão é bonito e o final parece uma grande corrida rumo a um abraço.
trecho da letra: “I am all the days that you choose to ignore”.

Faust arp”: tenho uma grande simpatia por essa. É uma música harmônica, mas mesmo assim de desencontro, principalmente entre a voz e a melodia em si. Gosto da instrumentação toda. É suave, suave.
trecho da letra: “watch me fall / like dominos”.

Reckoner”: de início parece um pouco com um maquinário, mas depois entra uma guitarra bem comportada e a voz quebra a atmosfera. Parece uma música de ir-embora, de viagem, aquela que a gente escuta na estrada balançando de leve a cabeça. Quando a escuto consigo imaginar uma rodovia sem grandes dificuldades. Alguém dirigindo com uma bolsa no banco do passageiro. Um pouco de silêncio e a atenção na estrada. Gostei do final sem fim.
trecho da letra: “you are not to blame for / bittersweet distractor”.

House of cards”: quando a escutei pela primeira vez, pensei: “forte candidata à música preferida”. Adorei a levada, a letra. O tom de espaço amplo e arejado. A batida marcada e sem pretensão, o início estendido... Ótima música.
trecho da letra: “I don't wanna be your friend / I just wanna be your lover / no matter how it ends / no matter how it starts / care about your house of cards / and I'll deal mine”.

Jigsaw falling into place”: um viva aos instrumentos de corda e aos “hmmm”. A voz do Thom Yorke está um pouco seca e áspera, e isso deu uma combinação interessante com a parte instrumental, que é o forte dessa música. Mesmo assim, destaco a voz. E destaco também a melhor letra do álbum.
trecho da letra: “before you've had too much / come back and focus again”.

Videotape”: nesse exato momento, minha preferida. Tranqüila e simples. Música que pode servir de lullaby. Fecha muito bem o “In rainbows”, pois destoa do início marcado e mecânico. É uma música repetitiva e até mesmo um pouco sombria, para se fechar as cortinas, ajeitar o cobertor e descansar. O final dela é quase nonsense.
trecho da letra: “this is my way of saying goodbye / because I can't do it face to face / so I'm talking to you before it's too late”.

É isso.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Dia triste

Hoje o dia amanheceu triste. Uma garoa insiste em não tocar em nada. Um vento incessante que não resfria a pele. O ar condensado num silêncio terno.
É um dia de olhar o horizonte e contemplar a beleza de um espaço vazio. De tocar no tronco das árvores e procurar vida. Senti-la. Tocá-la.
Dia de caminhar a esmo pela grama e fugir do tempo. Dia de se esconder dentro do bosque mais lindo e agarrar o ar.
É dia de procurar coelhos marrons nas tocas da alma, de colocar flores amarelas e roxas na boca.
Dia de acalanto. De pisar em folhas secas para deglutir o barulho. Dia que cheira a café fresco. Dia de ignorar a indiferença das pessoas. De ouvir palavras doces da boca de uma mãe. De encerrar um bebê nos braços e chorar baixinho a felicidade da existência.
Dia de pensar sobre o quadriculado xadrez do destino. De perder as chaves. De carona, mudar de mundo.
Dia de desalento. De chocolate quente frio. Passas. Pés descalços. Mãos inquietas, pescoço
coberto. De manhã nublada.
Dia, dia, m
ais um dia.
Dia triste.
E perfeito.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Sarah

trecho

[...]

Sarah sai para comprar flores. Acordou ácida. Óculos escuros. O vestido roto. O rosto tão jovem, duro. Se encanta com acácias e orquídeas. Se demora na calçada ainda coberta por lavandas atrasadas. Foge ao sorriso da florista. Leva simples margaridas. Magras, amargas. Sarah sai para comprar margaridas amargas e um pouco de pão. Sua mão, gelo, encontra sua outra mão num acalanto. No meio da tarde. Ela se acarinha, sente a multidão perto de si. Não devia ter saído. Ele pode estar. Pode ser. Pode existir. E ela? E ela? Num semáforo qualquer. Olha a luz verde. Amarela. Vermelha. Faixas brancas e cinzas. Pés pequenos. Uma delicadeza desperdiçada no fim de pernas tão desajeitadas. Sente-se angulosa. E de novo seus quadris. Ombros. Relance de respiração na nuca. Ela se apóia. Amassa uma margarida. Volta pra casa. Senta. Aperta os dedos e se debruça sobre as coxas. Olha e olha. O tapete, a mesa, o teto. Suas costas agradecem o toque morno do sofá. Adormece de olhos abertos.


[...]

sábado, 13 de outubro de 2007

Man, it's friday night... Let's rock!

Como é incrível quando você, depois de séculos, faz uma coisa que você gosta muito. Como João de Santo Cristo, a gente vai “pra festa de rock pra se libertar”. Assim, sexta à noite... let’s rock!
Nada melhor do que voltar a sentir música ao vivo batendo pulsante na sua pele. Nada como uma guitarra, uma bateria, um baixo e uma bela voz unindo centenas de pessoas em coro. Nada melhor do que ficar sem voz de tanto gritar e cantar, nada melhor do que ficar pulando e dançando feito louca a madrugada toda. Alma lavada.
Primeiro, como sempre, começamos com a saga pra chegar ao lugar, já que ter a Valéria com sua meia-calça e unhas roxas como guia é o mesmo que entrar numa fria (incluindo aí a minha baita vontade de pão-de-queijo que fez com que não perdêssemos o maldito ônibus - intergaláctico -, que, por sua vez, veio cheio de amiguinhas baratas. Meu All Star tornou-se assassino em série ontem).
Melhor do que entrar numa fria, nesse caso, é entrar numa caminhada desgraçada pelos cenários simultâneos de “Sinais”, “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado”, “Olhos Famintos” I e II, “Lost” e “Supernatural”. Que lugar esquisito, que caminhada estafante e que medo...! Parecia que estávamos passando pelos campos onde naves espaciais pousam e extraterrestres torturam terráqueos indefesos. A cada dois minutos dava pra imaginar um E.T. saindo daquele matagal com uma pistola de raio laser em punho (fomos construindo toda uma história macabra pra manter a atenção na conversa e não nas pernas doendo).
Chegando ao Kazebre... Iuhuuu! Nada como aquela cachoeira artificial verde (tínhamos caminhado tanto que já estávamos na casa dos extraterrestres de Saturno) e aquela fogueira enorme de boas-vindas.
O público do Kazebre é bem eclético (diferentemente do que freqüenta a Led Slay, por exemplo), o que me assustou de início. Não estou acostumada a ver pessoas tão diferentes no mesmo lugar, ainda mais se tratando de um lugar tão longe em que se vai para, entre outras coisas, escutar um pouco de boa música ao vivo (presumindo que “boa música ao vivo” não signifique a mesma coisa pra todo mundo).
Assim, destaco o público animado, os clássicos tocados pela banda de abertura (The Doors, The Beatles, AC/DC, Cazuza, Iron Maiden, Led Zeppelin, Nirvana, Alice in Chains, Metallica e etc.) e, obviamente, o que fui lá pra ver, ou seja, o show-cover-tributo ao Renato (Russo). Aqui eu me detenho na humildade dos integrantes da banda que prestava a homenagem e critico a falta de habilidade deles na interação com o público, o que não prejudicou o show em nada pois, ali, a estrela mesmo foi o público, que cantou a plenos pulmões todas as músicas (com especial atenção ao momento-epifânico de todos os versos gritados de “Faroeste Caboclo”, como não podia deixar de ser).
Ok, agora vou dormir, agradecendo a escolha de “Lithium” como tag de “Perfeição”, o setlist com “Quando você voltar” num voz-violão suave + “Sete Cidades” + “Acrilic on Canvas” + “Mais do mesmo” + “Metal contra as nuvens”, agradecendo o ambiente bacana e diversificado, a noite amena, a possibilidade de filmar, o guaraná gelado às 3 a.m. e, claro, agradecendo o metrô, abençoado, que fez com que chegássemos mais rápido e sem andar tanto... =)

[Kazebre - 13 Out. 2007]

Alguns vídeos*:

trecho “Highway to hell” [AC/DC]:

trecho de “Rock n'roll” [Led Zeppelin]:



trecho de “Fear of the Dark” [Iron Maiden]:

trecho de “Pais e Filhos” [Legião Urbana]:

trecho de “Acrilic on Canvas” [Legião Urbana]:

trecho de “Quando você voltar” [Legião Urbana]:




*peço perdão pela péssima qualidade dos vídeos, mas ao menos o áudio está (quase) decente.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Envelhecimento, futuro e morte

“don't kid yourself
and don't fool yourself
this love's too good to last
and I'm too old to dream

don't grow up too fast
and don't embrace the past
this life's too good to last
and I'm too young to care

don't kid yourself
and don't fool yourself
this life could be the last
and we're too young to see”.


(Blackout, Muse)

É incrível como só percebemos certas coisas quando elas surgem muito próximas a nós.
Hoje de manhã cedo me deparei de forma direta com a velhice, passagem do tempo inerente a tudo e a todos, inevitável... A velhice. As olheiras, o olhar cansado, a sensação de automatismo tedioso de uma vida sem maiores aventuras e emoções. Os braços largados ao lado do corpo, como peças de uma marionete vítima da máquina gigantesca que é o mundo, a vida, as coisas e o tempo.
Se encontrar com a velhice assim, crua e próxima, pode parecer, à primeira vista, impactante. Mas não. É mais como um entendimento silencioso, seguido do famoso questionamento existencialista “quem somos, de onde viemos, para onde vamos”. É uma compreensão calada. Tranqüila. Plácida. O tempo é inevitável. E a velhice está aqui.


***

Anteontem à noite, portanto, uma segunda-feira, dia 08 de Outubro de 2007, entre mais ou menos 22h30 e 23h, eu planejei todo o resto da minha vida. Pode parecer ambicioso demais fazer isso em cerca de vinte, trinta minutos de um dia qualquer, voltando pra casa, dentro de um ônibus e, depois, andando pelas ruas... Mas foi isso mesmo que aconteceu.
Estava lendo um pouco, e sentia uma espécie de raiva reprimida de não-sei-quê-não-sei-quem. Fechei o livro. E terminei a viagem conversando comigo mesma, listando na mente as coisas que queria fazer um dia. Fui as encadeando, colocando cronologicamente, calculando os anos. Cheguei em casa com minha vida traçada, no mínimo, pelos próximos 25 anos.
Foi uma experiência ótima. Como tomar ar depois de vários minutos submerso. Você enche bem os pulmões e num átimo sente que realmente está vivo.
Agora é trabalhar para seguir os planos, realizar todas as metas, conhecer, experimentar e ousar toda a pluralidade de coisas que essa súbita reflexão trouxe.
Sou dona completa da minha existência, seja ela corpórea ou espiritual. Sou dona também do meu espaço, seja ele o físico que meu corpo ocupa ou o imaterial que a minha mente explora; dona das minhas palavras, dos meus atos, da minha visão de mundo. E agora sou dona também do meu tempo e, principalmente, do meu futuro. Sou absoluta.

***

Cheguei em casa há menos de uma hora e soube que ontem uma moça se suicidou no viaduto que vejo através da janela. Se jogou, simplesmente. Era por volta das 16h30 e ela parou, olhou, passou as pernas sobre as grades, mirou o chão. Algumas pessoas viram. Minha irmã me descreveu a poça de sangue que ficou no asfalto depois do ocorrido. A moça tinha brigado com o namorado. Não tinha mais onde morar. Se matou.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

“Duas pessoas”

[conto do escritor português Herberto Helder]

Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frêmitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? – pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atônitos – são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção (“o teu cabelo”), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor para com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades inter-nacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até a emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trêmula, velos alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá pra lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato – enfim encontrado – na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer idéia excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quer dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas de Hamlet, 2º ato, 2ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polônio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo de Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? Que ledes, meu senhor? – Palavras! Palavras! Palavras! – Mas de que se trata, meu senhor? – Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês n.º5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras – mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e – fácil! – retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjeção onde afundar a abjeção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a sutileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espetáculo do nascimento e ação de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo caráter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.


Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade – que não sei se é também a dele – numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele – feia, triste – e os olhos fixos. Sorri incrivelmente – assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável, repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso.Cheira a desespero a quilômetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade noturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores. Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma suntuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se – o espírito do último homem. Queres um cigarro? – pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda essa tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho batom. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica – eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?
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terça-feira, 2 de outubro de 2007

“Echoes, silence, patience & grace”

Quando recebi a newsletter do Foo Fighters, na qual eles divulgavam o nome do novo álbum com lançamento previsto para o final de Setembro, confesso que fiquei um pouco intrigada, afinal, que tipo de álbum teria esse nome?
Ontem fiz minha primeira audição integral de “Echoes, silence, patience & grace”, apenas precedida por duas ou três visitas à “The pretender”, que abre o álbum e é também a atual música de trabalho da banda.
Minha primeira impressão, que geralmente se mostra enganada após outras audições, é a de que o álbum segue um pouco a linha dos álbuns que começam de uma forma mais forte e terminam numa descida vertiginosa em direção a algo mais calmo e introspectivo, como acontece, por exemplo, em “One by one”, também do Foo Fighters. Nesse álbum, o começo é sólido com “All my life” e a bem sucedida “Times like these”, e logo depois vai se direcionando para músicas mais tranqüilas, porém não de menor qualidade, como “Tired of you” ou “Lonely as you”, por exemplo*.
Enfim, essa é uma ligeira primeira impressão, que pode ser complementada pela idéia geral de que o álbum é bom. Porém, a partir de outras audições, é mais fácil formular uma opinião mais concreta. Dessa forma, trabalhemos sobre mais audições e, por enquanto, sigamos com uma análise mais detalhada de “Stranger things have happened”:
Para o meu gosto, essa música se mostrou, logo de cara, como uma das melhores (senão a melhor) do álbum. A voz do Dave Grohl está muito bonita, e o tom acústico dá exatamente a atmosfera de “dusty room” e “hazy afternoon”. Eu geralmente gosto dessa parte mais tranqüila do Foo Fighters, e a letra se encaixa perfeitamente nessa música mais reclusa instrumentalmente. Não é difícil imaginar alguém nessa sala empoeirada, encarando um cigarro e pensando no meio daquele tom amarelento de tarde cansada, escura e esfumaçada. 


*Aqui consideremos o álbum com 11 faixas, de “All my life” a “Come back”, e não aquele com as faixas bônus “Walking a line”, “Sister Europe” (Psychedelic Furs cover), “Danny says” (Ramones cover), “Life of illusion” (Joe Walsh cover), “For all the cows” (ao vivo), “Monkey wrench” (ao vivo) e “Next year” (ao vivo, bônus somente para a França).


“...such a simple thing?”


segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Maçã morna, canela doce

Cordas e palmas estalando logo ao longe. Um cheiro espanhol se espalha na tarde. Maçã com canela doce. Ar morno. E nos pés ela sente o formigamento estranho, o desejo de correr e engolir ar gelado, deglutir um pouco de tudo. Quer entendimento. Quer dançar com um aperto forte na cintura, firmeza nos quadris, o pensamento no céu. Girando e engolindo vento. Entendendo um pouco do mundo... Aperto no céu da boca. Desejo doce de maçã com canela. Um lenço vermelho, um pouco de gim. Sim, hoje ela se esquece do tempo e se deita preguiçosa no espaço... Voz rouca. As cordas se expressam por ela. Aperto nas mãos, e a fuga insana para a toca na árvore mais alta. Que a voz raspe na madeira e alguém a abrace de um jeito cálido, e calado, e só e distante. Ela só quer dormir. E dançar na vastidão profunda de uma nota solitária e perdida no meio do sol, no meio de um grande acorde azul... e quente. Maçã doce com canela. Olhar furtivo, pendente, jogado de lado no chão. E ela dança e dança abraçada a si mesma.


“Teoria das cores”

[conto do escritor português Herberto Helder]

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado por sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.