segunda-feira, 20 de abril de 2009

da invisibilidade dos seres

a borboleta sem cor bate no teto, ao redor da lâmpada, no êxtase de quem voa por luz. uma luz que ela nem sabe que existe, mas que a atrai a ponto de deslocá-la de seu eixo, transportá-la para o girar sem fim. as mãos que escorregam inertes ao lado do corpo, sem fôlego, envergonhadas de sua inação calada. os olhos, meu deus, os olhos sempre tão fundos como um poço seco. que os corpos não despertem mais na amargura de um lençol branco e intacto, que o vento não derrube mais minhas palavras aos pés do tédio. que alguém me agradeça os silêncios e ódios infinitos dedicados a esse nada. que um dia me perdoem com a intensidade dos desesperados. e nesse chão, que respira à nossa insignificância e acolhe nossa ida eterna com a resignação dos poetas, deitemos todos. ah, mundo de grãos de areia... tempo cuspido. horas, o que são as horas? talvez o espaço no qual marcamos a existência breve dos nossos sonhos diminutos, empacotados em cubinhos e incrustados na nossa garganta. por favor, tornem úmida minha esperança. semeiem árvores para termos onde nos apoiar. algum braço? onde estão os braços? compremos bengalas de ferro. a humanidade guarda as mãos num fosso. que colhamos os cravos da nossa derrota, os soluços da nossa pequenez. que peguemos, do sufoco da nossa liberdade e desistência, um pedaço de giz pra arrumar o mundo. mas então há o vento que tortura a janela, as unhas que desfiam pecados, a caridade sempre servindo à carência. há o sol que se parte em raios, uma folha que se desprende da planta, uma gritaria que se explode em milhões. há simplesmente a profunda desimportância do que realmente importa. somos seres invisíveis e de plástico. não consigo ver estrelas para nós.

domingo, 19 de abril de 2009

Desejo*

Está tudo tão gélido que meus pés tremem e batem na parede.
O corpo dela ao lado, o vômito por dentro, que vontade de matá-la.
Essa vagabunda me trai há seis meses com o retardado do apartamento ao lado. Eu chego mais cedo de propósito só para ouvi-la gemer e apanhar através da parede contígua.
Hoje descobri marcas em seu corpo, disse-me com um olhar parado e vermelho que caíra sei lá que diabos donde. Quase a jogo pela janela desse oitavo andar de tanta raiva. Engoli o nojo e o ódio, joguei as mãos no bolso e enterrei a minha unha tão forte na perna que arranquei sangue. Que vontade de matá-la.
E agora, ela aqui, ao meu lado, tão pura e suja, dormindo, indefesa, e o canivete ao alcance das minhas mãos. É só ir devagarinho e enfiar-lhe o canivete no pescoço, no corpo, tampar-lhe a boca, sussurar em seu ouvido o quanto ela é piranha e puta em seus últimos segundos de gozo vital.
Mas não. A olho. E a amo. Ainda. E tanto. Esse amor filho da puta que me faz soltar, esquecer o canivete. Eu amo essa desgraçada.
Acabei de quebrar o meu dedo na porcaria da parede.


[*escrito em 27 de Junho de 2006]

quinta-feira, 9 de abril de 2009

[sem título]

“não temos amado, acima de todas as coisas. não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmo construímos, tememos que sejam armadilhas. não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de sermos inocentes. não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. falar no que realmente importa é considerado uma gafe. não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. temos chamado de fraqueza a nossa candura. temos-nos temido um ao outro, acima de tudo. e a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia”.


(clarice lispector, uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)