sábado, 3 de novembro de 2007

511 dias

Engulo o abandono de Ana aos pedaços. Mas, bulímico, vomito tudo logo depois. Ana. E os nossos cabelos molhados.


Dois de setembro. Quinze horas. Metrô vazio. Ana sentada na cadeira de idosos. Eu, Folha, ela, Caras. Eu, amendoim torrado, ela, jujuba. Eu, estação Anhangabaú, ela, Sé.
Dezenove de setembro. Coincidência? Eu, cadeira de idosos, Ana, em pé. Eu e Ana, estação Liberdade. Escada rolante:
- Oi.
Movimento de cabeça.
- Olá.
Troca de telefones.
Vinte e cinco de setembro.
- Alô. Quero falar com a Ana.
- Não está.
- Não? Quando ela chega?
- Em um ano.
Papel amassado no fundo da gaveta.
Outubro. Babete. Lisa. Carla. As esqueço em quinze dias.
Novembro. Dezembro. Fevereiro. Junho. Outubro. Chuva. Desastres naturais. Vento. Gripe. Paixão passageira. Herpes. Desemprego. Emprego. Desemprego. Acidente. Carro e cara amassados. Onde está Ana? Onde Ana está?
Primeiro de novembro. Hospital. Eu, cadeira de rodas. Ana! repentinamente! na recepção!. Troca de olhares. Espanto. Taquicardia. Grito calado.
Apatia.
Nove de novembro. Combate com o papel amassado. Vitória minha.
Malditas muletas.
Tédio...
Revanche do papel amassado. Luta sangrenta. Ele vence.
Noite.
- Alô. Ana?
- Sim.
- Eh, oi. Paulo. Hospital. Dia primeiro. Cadeira de rodas.
- Metrô? Escada rolante?
- Sim. Tudo bem?
- Tudo. Você?
- Também. Cinema?
- Sim. Amanhã?
- Ótimo. Às oito?
- Certo. Qual estação?
- Sé?
- Ok, até!
Falta de saliva. Trovões. Durmo.
Natal. Ana, olhos azuis, vestido azul. Lençol vermelho. Teto caindo. Corpos amarelos. Gozo. Ana, uma profissional. Eu, apaixonado.
Trinta de dezembro. Ana confinada no meu apartamento. Olhos vidrados. Calma vulgar. Roupas espalhadas. A toco. Ela se desmancha. Ombros perdidos. Janelas fechadas. Palavras.
Trinta e um de dezembro. Eu e Ana enojados. Grudados. Vasculhei-lhe as veias. Ela preferiu meus dedos. Não amanhece.
Primeiro de janeiro. Ana sem voz me esquece enrolado em travesseiros. Não se despede. Agarra-se em trezentos reais. Leva minha foto, as chaves.
Dias de janeiro. Espero Ana sem descanso. Horas em frente ao espelho. Barbudo. Incolor. Acabo com os restos de silêncio que ela deixou.
Vinte de janeiro. Alta madrugada. Ana bêbada se joga ao meu lado. Dormimos abraçados.
Vinte e um de janeiro. Almoçamos cigarros e lágrimas. Ela, conversando com cada pêlo do meu corpo. Eu, abraçando cada pedaço de sua alma. Sozinhos.
Vinte e dois de janeiro. Madrugada. Ana não fala. Eu tento juntar nossos fragmentos. Ela se esquece. Desiste. Eu ainda tento juntar nossos fragmentos.
Vinte e dois de janeiro. Manhã. Ana acorda e abraça o sol. Sorri. Sorrio. Amamos. Nos perdemos. Beijo. Beijo.
Vinte e cinco de janeiro. Estamos práticos. Ela se muda e fica comigo. Compro toalhas. Ana passa horas no banheiro. Eu a agrado. Ela olha. Olha. Digo que a amo. Ela cala.
Vinte e seis de janeiro. Madrugada. Acordo. Cadê os braços de Ana?
Vou ao banheiro. Abro a janela. Ana correndo, sendo atravessada pela faixa de pedestres.
Não grito.

Tempestade, raio.
Ana molhada se perdendo na esquina escura. Sozinha, ausente, fugaz, flutuando no meio do nada. Eu, com a cabeça enfiada na água fria da privada, vomitando sua partida súbita e inexplicável. Definitiva.

[texto escrito em meados de 2006]

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