quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Fragmentos # 06


Tarde I

Cruzei a praça do tempo vendo como o branco do céu caía em gotas sobre a água quase estática, existente só em breves tremores, ondas; vendo como o vento dissolvia em seus braços uma voz que dedilhava acordes.
Lembro de sentir todos os músculos do corpo toda vez que o chão batia no passo.
Lembro de pensar nas cordas dançantes dentro da música.
Lembro de subir degraus, comprar livros, escrever em movimento, apertar minha cota diária de botões, expressar o número exato de sorrisos, respirar na cadência de equações químicas. E me recordo ainda que, após aceitar com resignação a dor na têmpora direita, fui pelo caminho saboreando na saliva o desejo de chocolate com cereja. Mas não havia tempo. Nunca há tempo. O grande relógio sobre a minha cabeça estalava. 13h30. Só era preciso correr.


***


Requiem for a window

Lembro de ter uma janela. No vão da porta ela colocava as orquídeas brancas. De manhã eu sabia que ela queimaria o pão, que o café estaria amargo, que o perfume dela incendiaria o banheiro.
Lembro bem daquela janela, com a cortina verde fosco que denunciava talvez seu desejo por árvores de todos os tamanhos e texturas. Uma cortina que ali estava para escondê-la, para separá-la do sol que a irritava tanto com sua ousadia de acordar cedo, todos os dias, iluminado, sempre.
(Eu gostava do barulho do salto dela logo antes da porta bater e da chave ficar a resmungar).
Antes de dormir ela costumava dar nós na ponta do lençol, como se contasse os prenúncios dos sonhos e pesadelos que a fariam acordar sonolenta às quatro da manhã, lavar o rosto, a nuca, os pulsos, beber suco, me fazer carinho no cabelo e se enrolar nos travesseiros feito pássaro.
Uma vez ela resolveu rabiscar as paredes. No nosso quarto eu podia ler trechos de pensamentos sem nexo, pedaços de cartas anônimas, anúncios esdrúxulos e inúteis. Ela não me falava nada. Empurrava seus desejos pra dentro da bolsa e saía pra passear dentro do vazio noturno dos domingos, dentro da melancolia da cidade encolhida pela ameaça do próximo dia. Na insinuação de que eu precisava de espaço, me largava no sofá, exasperado, só, eu e suas palavras.
No nosso último encontro com amigos ela me contou baixinho no ouvido que comia cerejas geladas quando criança. Aquilo deixara nela o cheiro amassado, de menina sufocada, sempre perdida no meio de um vermelho imperioso. “Cerejas tiram o meu medo de trovão”, ela ainda sussurrou rindo enquanto terminava o resto de gim. Nunca me esquecerei daquele olhar alcoólico e doce, de como vi as gotas de cereja pingarem de sua boca em mim, de como pela última vez consegui abrandar seu medo de trovão ao mergulhá-la na chuva.
Foram nossos últimos abraços no calor do terraço.
Ficaram minhas poucas lembranças penduradas na janela.

***

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