domingo, 24 de agosto de 2008

Re-parto

Na madeira da mesa pousava o sadismo do estilete*. Filetes gordos e salmorentos mapeavam nela a mesma densidade das mechas do teu cabelo todo pesado e líquido.
Do meu riso torto aproveitei para observar os sulcos dos meus dedos: veias, pontes, rugas, vales e, na ponta de todos eles, essas marcas estranhas, impressões da minha unicidade bêbada (exclusividade de existência, diz-se de identidade).
Vou cavando retas esquivas na madeira, assistindo meus dedos suaves dançarem com o estilete dentro da tarde que cai. A lâmina laranja me seduzindo sem cuidado, abrindo seus dentes sem pudor, nossa dança carnal, vales se enchendo e rios viscosos encobrindo pontes. Enquadro meu riso, e sinto teus cabelos descerem vermelhos pela minha garganta, escoarem doces do limite da madeira ao tapete.
O ranço do vinho vital me embriaga, me redesenho. Desmembro imperioso o meu universo, vou esmigalhando cada traço meu. Esculpo pra mim novas identidades. Em tua homenagem, me re-parto.




* a A. C. C. / inspired by “Ulysses”.

[texto de 24 de Agosto de 2008, 0h30]

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