terça-feira, 27 de maio de 2008

Fios

Libertava sua trança sempre calada no suor noturno da varanda. Começava por entrelaçar os dedos nos cachos avulsos e desobedientes, e depois vasculhava a nuca à procura dos cheiros perdidos do dia, dos tantos desejos esfacelados pelo sol e pelos nãos, à procura do pouco de si mesma que sempre largava de propósito nas calçadas. Em seguida ia desmantelando sem pressa os nós suaves dos fios amargos de tão castanhos, preguiçosos de tão moles. Num instante uma cabeleira dançante molhava seus ombros e suas costas, beliscava sua cintura e lhe dava os ares tão sufocados de mulher madura, insinuante e sinuosa, permanente e penetrante. Já angustiada, estampava-se no espelho para olhar a certeza de ser ela mesma, deglutida e revelada pelo poder feroz de suas mechas, pelo sabor dos jasmins que se desatava do emaranhado espesso que a envolvia. Com a palma das mãos ia desmembrando os ninhos fechados, desnudando ainda mais a si nos milhares de fios abertos aos pedaços, se perguntando arisca quando seus cabelos desbravariam o mundo sem o pavor do dia, sem o desamparo das tardes, o silêncio da noite. Por fim o sono a pescava dos devaneios e a atraía para a cama. Com os braços e os dedos mais uma vez acariciava sua rede castanha e deitava a cabeça no travesseiro com toda ela espalhada, feito armadilha para a liberdade.
Dormia serenamente até a manhã seguinte, com a alma solta.


Um comentário:

gabriela ismerim disse...
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