quinta-feira, 19 de junho de 2008

Fragmentos # 05

[ou: “treat her kindly” *]

[ou ainda: “a um mundo mais poético” **]


A poesia do mundo se busca no doce das palavras mais simples. No gesto mais contido e desesperado que nunca será observado com atenção. Na frase que fica retida na mudez da garganta, perdida no pânico de ser ouvida e compreendida em toda sua plenitude. Talvez a poesia do mundo se resguarde justamente no tanto que podia ter sido e não foi, na memória construída com a nossa imaginação alada, na saudade imensa do que nunca existiu, nem existirá. Simplesmente no desejo de que tudo fosse diferente e diverso, na impossibilidade de abraçar o vazio e preencher-se.



E as cordas que nos prendem todo o dia, todo o tempo. A gentileza que se perde no desperdício da nossa pressa. O afago sempre deixado para um depois eterno. O abraço remarcado num intervalo de página de agenda. O suspiro sinuoso barrado por portas e paredes. A ponte que nunca é suficiente pra levar o olhar mais profundo e todo falante em silêncio. As centenas de horários nunca vagos, de lugares marcados, de prisões por nós mesmos construídas na ilusão de sermos úteis. Como se a nossa utilidade e a finalidade das coisas trouxessem algum sentido para a existência ou alguma razão para o mundo.



Nos momentos em que o tempo pára, todo ele distendido e sonolento entre os dedos, o medo imenso de permanecer quieto e deixar-se levar sonâmbulo por limites difusos de repente chega e nos sufoca. Emergimos aflitos, com o coração em disparada por ter quase tocado no limiar do infinito, por ter quase atravessado a fronteira entre a nossa lúcida realidade e o mundo espelhado inteiro no caleidoscópio colorido da loucura.



Trate-a sempre com o mesmo cuidado que você tem ao acordar e não colocar os pés no chão frio. Tenha com ela a mesma paciência infinita de suportar a espera para a água esquentar durante o banho no inverno. Olhe-a com o coração cheio do mesmo sentimento que você tem ao perceber no ar o cheiro de café fresco logo de manhã. Enfrente-a com a mesma coragem com que você recebe vento e chuva no rosto, e cuide dela com o mesmo apreço com que protegia dos outros o brinquedo mais querido da infância. Toque-a com a delicadeza com que se experimenta a frieza de um pedaço de seda e com a volúpia de descobrir pela primeira vez a maciez cheirosa das pétalas. Fale com ela com o tom suave e sufocado de quem implora. Vasculhe seus olhos como se ali, nela, você buscasse respostas para todas as suas angústias. Beije-lhe as pálpebras e a ponta dos dedos como se esse fosse seu último ato apaixonado. Deseje-a com todo o calor de sua pele e acolha-a entre seus braços como se a recebesse em todos os seus poros. Goste dela com todo o carinho em você existente e assim faça-a sentir-se a menina mais amparada, a moça mais querida, a mulher mais adorada.


[texto escrito no dia 17 de Junho de 2008, 22h]


* da música “I know it's over”, The Smiths.
** do poema “O elefante”, Carlos Drummond de Andrade.

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