domingo, 2 de setembro de 2007

Sobre “Babel” e a trilogia

“Babel” (2006) é o terceiro filme da trilogia* do cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu. Essa trilogia, também composta pelos filmes “Amores Perros” (2000) e “21 grams” (2003), não é do tipo em que apenas se triparte uma mesma história, ela é um pouco diferente.
Os filmes têm por base acidentes envolvendo automóveis. No caso de “Amores Perros”, o acidente é um choque entre dois carros, sendo que um deles estava em alta velocidade; em “21 grams” há um atropelamento; e, em “Babel”, um ônibus cheio de turistas tem que subitamente interromper seu curso porque uma de suas passageiras está gravemente ferida.
O ponto central dos filmes de Iñárritu é como um acidente pode modificar e atingir de diversas maneiras as vidas das pessoas de alguma forma nele envolvidas. Há casos em que a personagem nem ao menos sabe do ocorrido, mas o que se passa naquele momento em sua vida só está sendo possível pelo fato do acidente ter se dado.
Os três filmes nunca se detêm em apenas uma trama, mas sim em várias, que se interligam tendo o acidente por elo. As personagens das diferentes histórias se encontram casualmente, se cruzam, se conhecem e, assim, têm suas vidas completamente (às vezes até definitivamente) alteradas em razão daquele acontecimento trágico.
Descortinando um pouco cada filme, temos que o interessante em “Amores Perros” é a atmosfera de precariedade, as cores fortes, uma desordem sempre presente, um cheiro de violência e uma espécie de fumaça que deixa tudo ainda mais caótico. As personagens vêm de realidades completamente diferentes e, além do acidente, o que as liga também é o afeto que têm pelos seus animais de estimação: cachorros com grande importância no desenrolar de todas as histórias.
O enfoque desse filme é o amor em suas mais diversas faces: brutal, físico, fraternal, incorrespondido, sem medida. O ódio também aparece, assim como a esperança. A adoração das personagens por seus cachorros nada mais representa do que a base estrutural dos amores humanos, só que essa adoração não impede que a maioria dos cachorros do filme seja morta ou gravemente ferida.
Um dos poucos pontos em que Iñárritu não foi feliz em “Amores Perros” foi na divisão das histórias dos casais em capítulos (estrutura posteriormente utilizada por Almodóvar em “Hable con ella”). Isso acabou por descartar a riqueza que ele teria no desenvolver das tramas se trabalhasse com um corte brusco e com uma edição mais agressiva, sendo esses, aliás, os pontos fortes de “21 grams”, por exemplo.
Assim, “21 grams”, ao ser brilhantemente fragmentado a partir de uma edição que desnorteia quem o assiste, é um filme mais bem acabado e, por isso, melhor que “Amores Perros”. Esse segundo filme da trilogia se estrutura como um quebra-cabeça ou um caleidoscópio, cheio de peças que só se mostram como um todo no final.
Ele trabalha com um conceito que mistura vida e morte. Quando percebemos porque a pergunta “how much does life weight?” é posta como a central do filme, tomamos conhecimento de que há uma relativização da vida e da morte, já que, para que a personagem protagonizada por Sean Penn viva, é necessário que o peso da morte se abata cruelmente sobre a personagem de Naomi Watts.
“21 grams” é perturbador. A idéia sob a qual o filme gira e se constrói toca em pontos como ética, religiosidade, destino, fatalidade e incompreensão de como certas coisas se desenham no mundo. O peso da vida equivale ao peso da morte? A dor que se sente a partir de uma perda trágica pode ser compensada com a vida de um outro alguém? Aí se seguem as últimas falas da personagem de Sean Penn, presentes no final do filme:


“How many lives do we live? How many times do we die? They say we all lose 21 grams... at the exact moment of our death. Everyone. And how much fits into 21 grams? How much is lost? When do we lose 21 grams? How much goes with them? How much is gained? How much is gained? Twenty-one grams. The weight of a stack of five nickels. The weight of a hummingbird. A chocolate bar. How much did 21 grams weigh?”

Agora, finalmente, entremos no melhor filme da trilogia: “Babel”.
Esse terceiro filme de Iñárritu já ganha por relacionar não mais apenas personagens completamente diferentes entre si, mas sim vindas de países e de culturas totalmente distintas. A distância enorme, os costumes e valores discrepantes, a forma como o acidente as atinge, é tudo grandioso e, ao mesmo tempo, singelo, banal e simples.
O acidente em si, que abre o filme, é de uma inocência e de uma casualidade que chocam. A sensação que se tem é a de que estamos diante de um perfeito exemplo do famoso Efeito Borboleta**, parte integrante da Teoria do Caos. Em “Babel”, uma simples brincadeira infantil (“o bater de asas de uma simples borboleta...”) mobiliza e abala vidas em pelo menos três continentes diferentes (“...poderia (...) provocar um tufão do outro lado do mundo”). E aqui está a genialidade e beleza do filme.
Assim, podemos destacar a forte presença do acaso e da fatalidade no desenrolar das histórias e, também, a importância dada às escolhas que fazemos que, por mais simples que sejam no agora, podem ser imensamente significativas no depois.
Além disso, por se embrenhar em culturas diferentes, o filme “Babel” traz um aspecto muito importante nas relações não só interculturais, mas também nas relações pessoais hoje de uma forma geral: o “listen”. Essa é a palavra do filme. As sociedades e as pessoas não se escutam, não se dão ao trabalho de ouvir o outro com o mínimo de atenção, se mantêm cegas e surdas ao que se passa ao seu redor, ignorando e se fechando em seus redutos de metal e vidro, como já dizia aquela frase de abertura do filme “Crash” (2004)***.
O “ouvir” no filme se mostra de forma tão latente que não há como não se identificar com a personagem da atriz Rinko Kikuchi. Não sei se o fato de o cinema oriental hoje estar tão em evidência acabar por gerar essa simpatia, mas, enfim, considero sua personagem como minha favorita no filme.
Concluindo, também acho interessante destacar que as personagens tanto de Brad Pitt como de Cate Blanchett de forma alguma tomam o centro da trama. As histórias que se entrelaçam se equivalem. E o que todas elas despertam no espectador é um sentimento uno e denso, talvez de revolta, talvez de vazio, talvez de desesperança ou, simplesmente, um sentimento de estarrecedora perplexidade.
_

* alguns nomeiam a trilogia de Iñárritu como “trilogia da morte”. Eu particularmente acredito ser uma confusão com a “Trilogia da Morte” do cineasta Gus Van Sant, composta pelos filmes “Gerry” (2002), “Elephant” (2003) e “Last Days” (2005). Entretanto, como os três filmes do cineasta mexicano também têm a morte como pano de fundo, podemos considerá-los uma “trilogia da morte”, mesmo sem nunca terem sido oficialmente nomeados como tal.

** recomendo o filme “The Butterfly Effect” (2004).

*** “We're always behind this metal and glass”.

Nenhum comentário: