sexta-feira, 25 de setembro de 2009

“uma coisa, despretensiosa”


Na obra de arte autêntica o artista inventa sempre. Uma vez terminada, a obra torna-se outra coisa. Pois, de uma forma ou de outra, a arte é sempre um começo*. Quem disse isto não foi uma mulher: foi Picasso. Um que agüentava melhor do que ninguém o desafio de começar do nada, a partir da sucata, do lixo, do papel rasgado, e produzir – sobretudo em sua escultura – não o monumental mas o efêmero, não o objeto pronto e acabado que simula a Coisa mas uma coisa, despretensiosa - assim mesmo, com letras minúsculas. Dar forma ao que não existia: criar uma coisa capaz de revelar, em sua precariedade proposital, o próprio truque do artista que transforma os restos e dejetos da civilização em idéia, em forma nova; que transforma o lixo em graça, em vida, em movimento. Nas esculturas, e sobretudo nas colagens de Picasso, a obra é ao mesmo tempo a coisa inventada e a brincadeira que a originou. Uma mulher feita de telha, pedaços de cano, restos de madeira e um galho seco, certamente não se pretende forma eterna e realizada. Mas realiza a eternização do gesto livre que lhe deu origem.


*Citado em: Picasso Sculptéur, catálogo da exposição de mesmo nome no museu Beaubourg, Paris, 2000.


(Maria Rita Kehl, trecho do artigo O peso da feminilidade, 2003).

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