
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
respiração
e o teu cuidado vinha sempre embrulhado em algodão.

domingo, 14 de dezembro de 2008
(da linha de giz rabiscada no tablado...)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008
sábado, 6 de dezembro de 2008
Marias

Nas cabeças, tranças desmanchadas, cachos abandonados, fios perdidos, gorros, lenços. Marias enodoadas, cancerígenas. O olhar poroso, as veias secas. O passo mancado. Peles trincadas pela terapia química.
É no hospital, naquelas cadeiras, macas, nas informações complicadas em linguagem dotoral, que só uma mensagem calada se espalha: a do medo choroso dentro da morte.
Minhas Marias, tão queridas, amputadas na sua feminilidade mais doce. Seios perdidos, úteros arrancados. A esperança pendente nas pontas dos dedos ou nas agulhas nos braços. Ossos doídos, futuro manchado. Que vivam ainda minhas Marias, todas lindas: maculadas.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
sábado, 29 de novembro de 2008
pelo telefone
[silêncio]
(“Mas meu sonho é mudar o mundo inteiro, mãe...”).

quinta-feira, 27 de novembro de 2008
pisar na terra
sábado, 22 de novembro de 2008
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Sobre a autoridade
É evidente que o mundo, sendo mediado pela palavra, deve ser discutido por todos e por longo tempo, pois é apenas através da troca de idéias e da pluralidade de discursos que poderemos, cada vez mais e melhor, compreender este mundo. Além disso, ações que visem a construção de uma coletividade sem tantas desigualdades, com mais respeito, com circulação livre de cultura e de posicionamentos diversos trazem à imaginação do mais desconfiado e desesperançado (ex) utopista um vislumbre de que talvez finalmente algo aconteça.
Só que quem é (muito) desconfiado sempre se mantém na retaguarda, até que lhe dêem abertura suficiente para que ele se deixe levar e, com o tempo, adquira confiança em algo. Dessa forma, grupos organizados sob o pressuposto de que todos têm voz e participação igualitária só se tornam um conjunto passível de crença de um desconfiado / (ex) utopista quando todos os que dele fazem parte realmente tiverem voz, participação, autonomia e opiniões ouvidas e levadas em consideração de igual maneira e por todos.
Sabemos que um grupo cujo funcionamento pretenda se configurar dessa forma está fadado a correr riscos de fracasso. Atualmente, com a guerra quase sanguinária em busca de uma posição de destaque nos diversos setores da vida, com a valorização do aspecto econômico acima do pessoal (ou uso do pessoal para sucesso do econômico, prática essa já corriqueira), enfim, com toda uma estrutura social que posiciona o “eu” num nível sempre acima e acima, o que esperar de um grupo inserido numa realidade como essa e que mesmo assim posiciona o coletivo numa perspectiva prioritária? As respostas são muitas. Podemos tentar desvendar algumas delas.
Primeiramente, é óbvio que nesse coletivo vozes serão engolidas por outras vozes, e as que se fizerem ouvidas começarão a exercer a faculdade da manipulação, angariando para si a idéia de portadoras da verdade. Ao conseguir construir essa imagem, essa ou essas vozes que “falaram mais alto” tomam posse do que podemos chamar de liderança, de autoridade.
A autoridade, ao contrário do que muitos acham, não é algo ruim. Figuras que apontem um direcionamento organizacional, que representem ideais de comportamento e/ou que se coloquem como exemplos a serem seguidos, são essenciais para que haja parâmetros, caminhos, direcionamentos viáveis para onde se ir. Entretanto, essas pessoas não se auto-proclamam figuras de autoridade ou conquistam esta através de jogos de poder. Geralmente, a autoridade lhes é conferida pelos outros, devido às suas capacidades de sustentação de verdades baseadas justamente no coletivo, ou seja, aqueles que conquistam involuntariamente para si a autoridade são simplesmente aqueles que sabem ordenar toda a diversidade de vozes de um coletivo num consenso que esteja de acordo com a grande maioria.
A autoridade é, ainda, baseada primeiramente na liberdade. Aquele que recebeu a autoridade do coletivo saberá fazer uso dela a partir do momento em que souber ouvir e deixar que cada um aja de acordo consigo mesmo. A liberdade de ação e pensamento que a autoridade permite se baseia na idéia do conselho. Alguém que detenha a autoridade não pode jamais tentar, com ela, impor sua opinião ou manipular as partes do coletivo de acordo com sua causa individual, mas sim deve apenas aconselhar, deixando com que cada um escolha se deve ou não se submeter à verdade coletiva proferida por esse alguém a quem foi concedida a autoridade. As partes do coletivo exercem, assim, a sua liberdade de escolha.
[texto em construção, 21/11]
(pra não esquecer de guardar lembranças)
Talvez a melhor época, as mais inocentes risadas, o cansaço e a alegria mais sinceras, as lágrimas mais redondas porque geralmente compartilhadas. Talvez amizades para a vida inteira. Com certeza o baú mais leve e mais pesado que a gente vai carregar pelas ruas da velhice, aquele que trará a saudade doce e ácida do passado largado lá na juventude, lá, lá longe, perdida no meio do nosso cheiro de naftalina e poeira do tempo.
Estou com medo do fim. De ter que sair lá fora, olhar o sol e ver o que há de vir. O que há de vir, afinal? (Medo).
Estou molhando as lembranças, cultivando sua terra, acariciando seus frutos com carinho e arranjando tudo cuidadosamente. Que elas sejam o meu melhor e que eu também consiga guardar algumas pessoas amarradas aqui dentro, só pra nunca esquecer.

Que acabe.
domingo, 9 de novembro de 2008
farewell
vento no rosto que nunca acaba. sopros, sopros, sopros. your hands used to be beside me. suspirando o vento, vento a suspirar suspirado. adeus pelo vidro. não, não feche a janela. never close the doors. há uma pomba perto do pára-brisa. brisas, asas. abertas. talvez chova. guardarei as gotas. não, não chore. i'll be back, i'll be back soon (...).

terça-feira, 4 de novembro de 2008
idéias, pedaços
(ou “esquizofrenia”)
andei querendo escrever sobre a locked-in syndrome em metáfora, dizendo sobre a imaginação e os sonhos ou sobre as prisões onde nos escondemos, lá dentro de nós. hoje de manhã cogitei o assunto das pessoas despedaçadas, estranhas, fisicamente tortas e unicamente belas. não sei, a imagem de despedidas-despedaçadas também me surgiu com freqüência dias atrás... aquela idéia de deixarmos pedaços nossos no outro toda vez que dizemos goodbye. deu vontade de inventar história a partir de um “hello, stranger” (alice, closer), e a imagem gelada e doce de olhos de abacaxi com hortelã me acompanha há longas semanas. pensei em moinhos de vento, numa saia rodada. saia floral estampada, bem brega e inocente. o rascunho de ontem se intitulava “dos sonhos que se configuram tristes e inertes” (clarisse, legião) e ia ter como corpo apenas uma imagem de um dente-de-leão. ia doer só um pouco. fico ainda horas tentando lembrar aquele trecho de “wish you were here” (pink floyd). seria “we are just two losts souls swimming in a fish bowl”? não sei, não lembro. não me encontro com essa música há tempos. talvez algum dia eu me ache nas calçadas, quem sabe. cogitei o “le petit prince”, mas depois não soube mais o que fazer com ele, nem porque cogitei, nem o porquê de nada. à tarde-quase-noite quis em desejo-impossível escrever sobre pirandello e pessoa, colocaria nietzsche, mencionaria machado, entraria no tópico da vida como um teatro e da palavra como a representação máxima do nosso silêncio. aqui eu lembro de herberto helder, do conto “duas pessoas” e do meu trabalho sobre a solidão na palavra (gostei dele). hoje foi bom porque também lembrei da minha idéia antiga sobre uma poética do silêncio em tchékhov... é/era uma boa idéia. e fico aqui nesse papo furado de pseudo-intelectual até que vem à minha mente aquele sorvete vermelho de morango que é meu cúmplice tão amigo. ele bem que poderia ser líquido. meus olhos doem. lamento esse baú de imagens soltas e minha inabilidade pra moldar o mundo em letras. eu podia ter escrito algumas coisinhas com elas, rabiscado pequenos trechos de palavras e vento. mas a mente cansada não se deixa, o corpo pesado pede descanso, meus sentimentos pedem silêncio e a mão inábil e lenta desaba. ainda bem que acho que ainda penso. ainda bem que às vezes ainda choro.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008
(confessionário | associação livre)
às vezes eu queria sair colando minha vida em post-its. espalhar naqueles pedaços de papel amarelo todas as etapas, episódios, pessoas, tudo o que eu lembrasse. tentar organizar um painel e desfiar na observação dele os restos dos meus dias brancos, parados, em silêncio. permanecer na quietude do ficar olhando, na placidez de quem admira um grande quebra-cabeças. essa noite pretendo não dormir. meus braços e ombros estão um tanto pesados, meu coração dispara quando elenco tudo o que ainda me resta a fazer. me falaram, olho no olho, da minha ansiedade transbordante. falaram com aquela sinceridade dura de quem diz a verdade em reprimenda. era uma pessoa estranha que falava, que me olhava, que me reprimia na frente de todos os meus medos como se eu tivesse, novamente, cinco anos de idade. fugi. minúscula, torta, envergonhada. fui me encontrar com uma parede amiga (apoio), depois com uma real amiga (abraço), mas evitei me encontrar comigo mesma (descaso?). ah, como eu compraria um pouco de tempo se vendessem... sem escrúpulos, ética ou pudor, sem pensar, eu trabalharia para comprar minutos, horas. como nos tiram tanto tempo..., e com isso nos roubam a capacidade de pensar, de sentir, de absorver, de ouvir e ser ouvido, de prestar atenção, de se perder e se achar sem a preocupação dos prazos, do ser útil, do cumprimento de expectativas vazias, da relação correta de documentos em mãos e do número exato de assinaturas no pedaço de papel. mundo estúpido. mundo burocraticamente estúpido. temos sempre de provar algos a alguéns. carimbamos, postamos, rubricamos. assassinamos o tempo como se fosse um gostoso hobby. não quero saber das estruturas sociais, da legitimação das instituições, do colapso da sociedade sem seus papéis timbrados, da cartolina adornada que vai mostrar a todos quem (o que) dizem que sou. ponto. mas mesmo assim eu ainda queria tempo... agora, por exemplo, creio que compraria umas vinte horas. dormiria em dez, produziria o que tanto me pedem em dez. estaria disposta. teria alguns minutos para o café, para os olás-tudo-bem. pensando melhor, talvez eu quisesse mais outras dez horas. aí sim conseguiria fechar todos pontos em aberto. dormiria sem preocupações. escutaria um pouco de música. caminharia, quem sabe. um passeio? não, não, isso já é voar alto demais. enfim, só dez horas, seria o suficiente, o necessário. vejo que não preciso mais de post-its. não há pedaços tantos de vida pra colar. ninguém gosta de montar quebra-cabeças de poucas peças. monocromáticas. programadas. tediosas. it’s time to go.
domingo, 19 de outubro de 2008
going away

quinta-feira, 16 de outubro de 2008
*
de repente algo explodia. mão espalmada na parede gritando socorro. soluços presos no mármore cinza que chorava nossa fome. o azulejo sussurando ‘calma...’, o espelho rindo do olhar morto de vontades. desespero se enroscando nas pernas, veneno sufocando veias, desamparo condensado no suspiro. de repente, (respira) o silêncio doce.
(deitamos famintos, secos, cansados e sós, e dormimos vazios sonhando no talvez).
domingo, 12 de outubro de 2008
Fragmentos # 08
Não gosto quando a gente começa a acreditar nas coisas e então vem uma tempestade de ventos e leva tudo-tudo embora... (“Faríamos floresta do deserto e diamantes de pedaços de vidro”).
Alguém acredita que, mesmo com 23 primaveras completas, eu ainda ganhei presente do Dia das Crianças? Pois é. Minha mãe é a mais incrivelmente legal de todas. Rejuvenesci uns 10 anos comendo bombons. =)
(obs.: minhas duas irmãs, de 18 e 20 anos, também ganharam caixas de bombons como presentes em comemoração ao fato de, para nossa mãe, ainda sermos eternos bebês).
Preciso começar meus estudos para me tornar tradutora-intérprete de silêncios. Ou então fazer um curso de interpretação daquelas frases que querer dizer qualquer outra coisa menos o que realmente dizem. Tudo isso porque ainda não consigo confiar em tudo o que os olhares me contam...

sexta-feira, 10 de outubro de 2008
virando lagarta

quinta-feira, 9 de outubro de 2008
morte
(para c.)
e ela carregava nos braços aquela ausência funda, de puro susto pingado nos olhos. acaso, mundo avesso-estranho. os dedos pesados desenhando curvas em vidro, o cacho calado ao lado do ouvido. fios doces de água pendendo da garganta, pequenos suspiros suspensos no teto. ausência pra sempre embalada e segura perto do peito. silêncio.
domingo, 5 de outubro de 2008
“Olhos mortos de sono”
Báiu-báiuchki-baiú,
Vou cantar-te uma canção...
Arde, em frente da imagem, um candeeiro verde. Estende-se, através do quarto, de um canto a outro, uma corda com cueiros e um enorme par de calças negras. O candeeiro projeta no teto uma grande mancha verde, enquanto os cueiros e as calças lançam sombras compridas sobre o fogão, sobre o berço e sobre Varka... Quando a luz começa a bruxulear, a mancha e as sombras animam-se e põem-se em movimento, como tangidas pelo vento. Falta ar. Cheira a sopra de repolho e couro de botas.
A criança chora. Seu pranto há muito já se tornou rouco e cansado, mas continua gritando e não se sabe quando vai parar. Mas Varka está com sono. Seus olhos grudam, a cabeça pende, dói-lhe o pescoço. Não consegue mover as pálpebras, nem os lábios, e tem a impressão de que seu rosto secou e lenhificou-se, que a cabeça ficou pequena como uma cabeça de alfinete.
- Báiu-báiuchki-báiu, — ronrona — vou fazer-te um mingauzinho...
Um grilo ruida no fogão. Atrás da porta, no quarto vizinho, roncam o patrão e o aprendiz Afanássi... O berço range, como se fora um lamento, Varka vai ronronando - e tudo isto funde-se num canto soturno, acalentador, que é tão doce ouvir, quando se vai para a cama. Agora, porém, esse canto apenas irrita e constrange, porque traz um entorpecimento, e dormir é impossível. Se isso, Deus não o permita, acontecer, os patrões vão moê-la de pancada.
Bruxuleia o candeeiro. A mancha verde e as sombras põem-se em movimento, entram pelos olhos entrecerrados, imóveis, de Varka, confundem-se, em seu cérebro meio adormecido, em imagens nebulosas. Ela vê nuvens escuras, que se perseguem pelo céu, gritando como aquela criança. Mas eis que soprou o vento, sumiram as nuvens, e Varka vê uma estrada larga de macadame, coberta de lama quase líquida. Sobre aquela estrada, carroças deslocam-se devagar em fila, arrastam-se homens de alforje ao ombro e perpassam sombras estranhas. De ambos o lados, vê-se uma floresta, através do nevoeiro gélido. De repente, os homens de alforje e as sombras caem por terra, na lama semilíquida. “Para que isso?”, pergunta Varka. “Dormir, dormir!”, respondem-lhe. E eles adormecem profunda e docemente. Pegas e corvos estão pousados sobre os fios telegráficos, gritam como a criança e procuram acordar os homens.
- Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção... — ronrona Varka e já se vê em certa isbá escura, abafada.
Revolve-se no chão o seu falecido pai, Iefim Stiepanov. Ela não o vê, mas ouve como rola de dor e geme. Como diz o doente, a hérnia “tomou conta dele”. A dor é tão forte que ele não pode, agora, dizer palavra e somente sorve o ar e bate os dentes como se bate num tambor.:
- Bu-bu-bu-bu...
Mãe Pielaguéia correu à casa senhorial, para avisar os patrões de que Iefim estava morrendo. Já saiu há muito e está demorando demais. Varka fica deitada sobre o fogão, sem dormir, prestando atenção àquele “bu-bu-bu”. Mas, eis que se ouve um carro chegar à isbá. Os patrões enviaram para ver o doente um médico jovem, hóspede deles. O médico entra na isbá. Não se consegue vê-lo no escuro, mas ouve-se como tosse e faz barulho com a fechadura.
- Acendam a luz — diz ele.
- Bu-bu-bu... — responde Iefim.
Pielaguéia corre para o fogão, à procura dos fósforos. Depois de um minuto de silêncio, o médico encontra um no bolso e o acende.
- Nesse instante, paizinho, nesse mesmo instante — diz Pielaguéia e corre para fora, um pouco depois, e volta com um toco de vela.
Iefim está com as faces coradas, brilham-lhe os olhos, e o olhar parece estranhamente penetrante, como se pudesse ver através do médico e das paredes.
- E então? O que foi que você inventou? — pergunta-lhe o médico, inclinando-se sobre ele. — O quê! Faz muito tempo que tem isso?
- Como? Chegou a hora da morte, Vossa Nobreza... Vou deixar o mundo dos vivos...
- Chega de bobagem... Vamos curá-lo!
- Seja como quiser, Vossa Nobreza, agradecemos humildemente, mas a gente compreende... Se já chegou a hora da morte, que se vai fazer?
O médico passa um quarto de hora lidando com Iefim, depois se levanta e diz:
- Não posso fazer mais nada... Você deve ir para o hospital, eles vão te operar lá. Vá agora mesmo... Sem falta! Já é um pouco tarde, no hospital estão todos dormindo, mas não faz mal, vou dar a você um bilhetinho. Está ouvindo?
- Mas, como é que ele pode ir, paizinho?— diz Pielaguéia. — Não temos cavalo.
- Não faz mal, falarei com os patrões, eles vão emprestar um.
O médico sai, apaga-se a vela e escuta-se novamente: “bu-bu-bu”... Depois de meia hora, ouve-se chegar à isbá uma telega pequena, enviada pelos patrões, Iefim apronta-se e vai...
Mas, eis que chega uma clara, luminosa manhã. Pielaguéia foi ao hospital para se informar sobre Iefim. Uma criança chora e Varka ouve alguém cantar, com a sua voz:
- Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção...
Volta Pielaguéia, persigna-se e murmura:
- De noite, eles o operaram e, de manhãzinha, entregou a alma a Deus... Que esteja em paz, lá no céu... Dizem que o levamos para lá muito tarde...
Varka vai para o mato e chora lá. Mas, eis que alguém lhe bateu na nuca, com tanta força que sua testa choca-se contra uma bétula. Ergue os olhos e vê, diante de si, o patrão sapateiro.
- Que está fazendo, porca? A criança chora e você está dormindo.
Puxa-lhe a orelha com força. Ela sacode a cabeça e torna a balançar o berço e a ronronar sua canção. A mancha verde e as sombras das calças e dos cueiros balançam-se, piscam-lhe e, pouco depois, dominam-lhe novamente o cérebro. Vê mais uma vez a estrada de macadame, coberta de lama semilíquida. Os homens de alforje às costas e as sombras estão estirados e dormem profundamente. Vendo-os, Varka sente uma vontade louca de dormir, dormir com toda a alma; mãe Pielaguéia, porém, caminha a seu lado, apressando-a . Vão à cidade pedir emprego.
—Uma esmolinha, pelo amor de Deus! —implora a mãe aos transeuntes. — Por caridade, meus bons senhores!
- Me dá a criança! —responde-lhe uma voz conhecida. — Me dá a criança! — repete a mesma voz, mas agora já abruptamente, com rancor. — Está dormindo, animal?
Varka levanta-se de um salto e, olhando em redor, compreende o que sucedeu: não hás mais estrada, nem Pielaguéia, nem gente, mas, no meio do quarto, está a patroa, que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa gorda, de ombros largos, alimenta a acalma a criança, Varka olha-a de pé, esperando que acabe. Além das janelas, o ar já está se tornando azul, empalidecem as sombras e a mancha verde no reto. Não demora a manhã.
- Toma! — diz a patroa, abotoando a camisola sobre o peito. — Está chorando. Deve ser mau-olhado.
Varka apanha a criança, deita-a no berço e recomeça a embalá-la. A mancha verde e as sombras desaparecem pouco a pouco e já não há ninguém que se esgueire para dentro de sua cabeça e enevoe-lhe o cérebro. Mas não passou o sono, um sono terrível! Varka deitas a cabeça na beirada do berço e balança-se com todo o corpo, a fim de dominar este sono, mas, apesar de tudo, seus olhos estão grudados e pesa-lhe a cabeça.
- Varka, vai acender o fogão! — ressoa a voz do patrão, atrás da porta.
Quer dizer que já é tempo de se levantar e começar o trabalho. Varka deixa o berço e corre a buscar lenha no depósito. Está contente. Quando se anda ou corre, não se tem tanto sono. Traz lenha, acende o fogão e sente voltar a si o rosto lenhificado e aclararem-se as idéias.
- Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
- Varka, limpa as galochas do patrão!
Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa em como seria bom enfiar a cabeça numa galocha grande e funda e cochilar um pouco... De repente, a galocha cresce, fica inchada, enche todo o quarto. Varka deixa cair a escova, mas, no mesmo instante, sacode a cabeça, arregala os olhos, procura fazer com que os objetos não cresçam e não se movam em seus olhos.
- Varka, vai lavar a escada lá fora, que até dá vergonha perante os fregueses!
Varka lava a escada, arruma os quartos, depois acende outro fogão e corre à venda. Há muito serviço, não sobra um instante de lazer.
Mas, não há nada tão difícil como ficar parada, diante da mesa da cozinha, e descascar batata. A cabeça tende a pender sobre a mesa, a batata parece saltitar-lhe nos olhos, a faca tomba-lhe da mão. Ao lado dela, vai andando de um lado para outro a patroa gorda e zangada, de mangas arregaçadas, e fala tão alto que sua voz reboa no ouvido. É outra tortura servir à mesa, um inferno lavar roupa, costurar. Há momentos em que se tem vontade de não ligar a coisa alguma, arremessar-se ao chão e dormir.
Passa o dia. Vendo a escuridão chegar às janelas, Varka aperta com as mãos as têmporas, que tendem a lenhificar-se e sorri, sem saber por quê. A treva acaricia-lhe os olhos que grudam e promete-lhe um sono forte, para daqui a pouco. De noite, chegam visitas.
- Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
- Varka, corre para comprar três garrafas de cerveja!
Levanta-se de um salto e procura correr o mais depressa possível, para enxotar o sono.
- Varka, vai buscar vodca! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka, limpa os arenques!
- Varka, embala a criança! — ressoa a ordem derradeira. Um grilo trila no fogão. A mancha verde no teto e as sombras das calças e dos cueiros esgueiram-se novamente para os olhos entrecerrados de Varka, bruxuleiam e enevoam-lhe a cabeça.
- Báiu-báiuchki-baiú, — ronrona — vou cantar-te uma canção...
Mas a criança grita, extenua-se de tanto berrar. Varka vê novamente o macadame lamacento, os homens de alforje às costas, Pielaguéia, pai Iefi. Compreende tudo, reconhece a todos, mas, através da modorra, somente não consegue compreender aquele força que lhe amarra pés e mãos, que a esmaga e impede-lhe a vida. Olha ao redor, procura aquela força, para se livrar dela, mas não a encontra. Por fim, extenuada, concentra todas as energias e todo o seu olhar, espia para cima, para a mancha verde que bruxuleia e, prestando atenção aos gritos, encontra o inimigo que a impede de viver.
O inimigo é a criança.
Ri. Acha estranho que, até então, não tenha compreendido uma coisa tão simples. A mancha verde, as sombras e o grilo parecem rir igualmente, surpreendidos.
A idéia absurda toma conta de Varka. Ergue-se do tamborete e passeia pelo quarto, sem piscar, um sorriso largo no rosto. Está contente e excitada com a idéia de que, dentro de um instante, vai livrar-se da criança, que a deixa amarrada de pés e mãos... Matar a criança e, depois, dormir, dormir, dormir...
Rindo, pestanejando e ameaçando a mancha verde com os dedos, Varka aproxima-se cautelosa do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de estrangulá-la, deita-se rapidamente no chão, ri de alegria porque já pode dormir e, um instante depois, dorme profundamente, como se estivesse morta...
domingo, 28 de setembro de 2008
| viagem pra dentro da íris |
De trás da cerca de madeira espetou o dedo no prego achando que era espinho de flor. Com a dor despertou e viu a velha cerca coberta de musgo, a madeira posta na ordem triste do que não pediu pra acontecer. Procurou a flor que jurava estar ali. Percebeu que era só devaneio e pisou com força o pé no chão. O prazer da terra molhada se espalhou pelo seu sangue, machucou com cor seus lábios pálidos, incandesceu seu rosto que se virou para o céu. Olhou e viu o sol, correu a pupila pelo algodão borrado das nuvens, apertou o dedo machucado com o coração. (“Mas o coração é só um órgão, mãe”. “É sim, meu filho, mas é o mais dolorido de todos”). Caminhou ainda três passos com a pele tatuando a terra, com os olhos perdidos no manto do céu. Dentro dos três passos ensaiou uma pequena dança por dois continentes, arrastou sua mente por dunas azuis, se levou para o longe dentro do eterno. Ficou assim parado em vôo num canto do jardim, descalço e sozinho, com sangue pelos dedos e sol a se espatifar nos olhos. Decidiu não voltar, e saiu correndo atrás de sua flor.
*
sábado, 27 de setembro de 2008
setembro, quinta

quinta-feira, 18 de setembro de 2008
“pasárgada não existe!”: diálogo
g: (chegando com ares de novidade e espanto) você não sabe... pasárgada não existe!
g: não, eu descobri que... me contaram que pasárgada não existe porque é o lugar onde você gostaria de estar ao invés de estar onde está.
s: [*...entendendo...*] ah, sabe o “le petit prince”? então, lembro de uma frase dele que fala sobre isso.
g: eu não lembro...
s: peraí..., eu acho que é assim: “on n’est jamais content là où on est”. só não lembro o capítulo... procuro ainda hoje e te mando.
g: é, então...
s: mas isso é verdade, a gente sempre tá querendo estar em outro lugar. é essa coisa da eterna busca humana, sabe?
g: é... mas pasárgada não existe... [*“para onde vou agora?”*]
(na porta da geladeira)
“mãe, sei que você não tá aqui. tô sentindo falta do teu beijo de manhã, do pão com queijo derretido, do teu cheiro de lavanda e leite morno. sei do seu barulho e agitação, da limpeza bagunçada da casa, dos legumes com o monte de vitamina que a gente sempre precisa comer. mas o que falta mesmo é o teu colo, tua risada que estala, tua vontade de contar história, a cama forrada com lençol limpo e com aquela dobra que você sempre deixa pra sussurrar baixinho “vem-dormir” no ouvido da gente. mãe, vê se vem logo. tô te esperando. abraço com beijo. aparece. saudade chata. a roseira floresceu de novo. tem laranja. sábado vai chover. te amo”.

terça-feira, 16 de setembro de 2008
Sentidos II

O cotidiano ligado num piloto automático, com sua mecanicidade e velocidade, com a precisão de uma máquina enferrujada e precária que insistimos ser perfeita, nos torna rígidos, insensíveis e impenetráveis como uma chapa de aço.
Concordo que isso talvez seja um sistema de defesa, para não se absorver por completo a ilogicidade da realidade, para absorvê-la somente em pequenos fragmentos. (Doses homeopáticas das coisas confusas e surreais que não temos a plena capacidade de compreender).
Pode ser por isso que refletimos tão pouco, que não nos permitimos nos distanciar e olhar com estranhamento para o mundo. Se pensássemos na imperfeição da realidade com mais freqüência, se nos deslocássemos mentalmente da banalidade da nossa rotina, teríamos problemas em encontrar certos sentidos, certas significações para coisas e eventos que, antes, nos pareceriam normais.
Sentidos I

Esses sentidos, em sua maioria, surgiram porque algum dos cinco sentidos foram despertados bruscamente. Foi um cheiro que passou correndo e você agarrou sem saber, foi o esbarrão que na hora doeu mas que depois não doeu mais a não ser na lembrança, o gosto diferente daquele chocolate que te deram sem você querer, a palavra que só você ouviu ao acaso, aquilo que só você fez questão de olhar.
É a vida latente dos primeiros sentidos, provocados pelos segundos sentidos, que faz com que você perca o sentido para onde estava indo, ignore os sentidos para onde irá e dê sentido para cada dia que você acorda não vendo sentido algum.
domingo, 14 de setembro de 2008
Let’s talk about hate and pity
Mas, ao invés de estar mergulhando meus grandes olhos num pouco de cultura, cá estou eu pelas janelas pululantes da Microsoft, lendo pela Internet textos que as pessoas escrevem e doam ao poderoso tio Google.
O interessante é que a gente sempre acaba encontrando algumas surpresas nesses passeios pela web. Hoje até plágio eu achei, olha que legal. O engraçado é que eu realmente não ligo para direitos autorais. Como já dizia Gabriel García Márquez, as frases estão sempre navegando sem dono pelos ares, é só levantar os dedos e agarrá-las. A questão é que depende muito de quem faz a cópia e, no caso em questão, a minha surpresa não foi nada agradável.
Enfim, mas nada disso vale meu domingo, meu ódio (que é sempre) momentâneo, minha piedade sem graça ou este post.
Acho que foi só pura vontade de gastar caracteres mesmo. =)

quarta-feira, 10 de setembro de 2008
Centopéia
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Fragmentos # 07
.aurora borealis.
Ontem tuas digitais encontraram meus poros.
*
La coccinelle dans tes cheveux
(A joaninha nos teus cabelos)
Sonhei com você e eu. Você de preto me abraçando apertado. Eu olhando tua sapatilha vermelha querendo fugir da grama pra me alcançar. Você cheirando a dezembro e infância, e eu chorando as lágrimas redondas da nossa saudade.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008
.minha coleção de palavras.
– l’essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince, afin de se souvenir.
– c’est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.
– c’est le temps que j’ai perdu pour ma rose... fit le petit prince, afin de se souvenir.
– les hommes ont oublié cette vérité, dit le renard. mais tu ne dois pas l’oublier. tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. tu es responsable de ta rose...
– je suis responsable de ma rose... répéta le petit prince, afin de se souvenir”.